TAL DEUS
— Wilson Bueno
na voz de Sílvio Diogo
Descubro Deus, pasmo de horror, pelas esquinas e quebradas; suas asas me guardam, ainda que a vida desafine e me jogue na agrura, cascalho ao sol.
A vida e Deus somos dois entes que se completam e se entreolham com gravidade, quase solenes, sem perder a curiosidade jamais.
Como Deus existe, nem sequer o dia é ateu com a sua luz e a manhã profana.
O meu Deus, por exemplo, é assim, e leva a noite nas costas como o prisioneiro em um campo-de-concentração.
No fundo do copo, na madrugada tchecoviana, no trânsito da cidade, no corpo que cai no Xaxim, no sangue do sagrado vivo, o meu Deus é estupendo e exalta as coisas, todas as coisas, com aspereza quase incompreensível — não fosse ele o Deus e eu, a sua criatura.
Salvo dos escombros, esse Deus não dá mostra de que tenha sofrido um viaduto sobre os ossos martirizados. A sua humildade, sendo altiva, chega a parecer quase insolente; o seu manto me concede a sombra; e o mistério me dá o Norte da estrela-do-paraíso.
É ele quem vai, a barba por fazer, moído de cansaço, mal aponte a manhã, é ele quem vai atrás do rabo do arco-íris. E não dá bom-dia a quem passa, este ser alheado e cheio de dúvida.
O meu Deus é tão surpreendente que pode exibir, como prova de seu destino rude, as mãos, as grandes mãos de minha avó bugra com nome de imperatriz — Maria Rosa Custódia de Cenes — e, ao mesmo tempo, levar-me, tugúrio adentro, ao doloroso encontro com a minha cara que o tempo, a machadadas, se incumbiu de esculpir. Sulcos, queixos, arestas. É uma cara enorme e dois olhos esbugalhados.
Nunca que tenha morado comigo um Deus gentil, pois, se assim fosse, certamente eu não o teria percebido, e, creio, nem ele a mim — de tal forma carecemos um do outro, muita vez desavergonhadamente. Mas como seja ele o dono de tudo, sou eu quem me calo — com pudor.
Egresso da noite dos enforcados, tal Deus não se emociona com o que o dia possa parecer estragado pelo veneno de um novo dia, e, atormentado pelo dom da fuga, como o encarcerado de uma galera portuguesa, inventa logo um crepúsculo — brusco rompante de sua inquietação aturdida.
Não que eu seja um crente; ele é que é espantoso, esse Deus construído pra que não se morra diante do alto risco de viver.
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Do livro Bolero’s Bar. Curitiba: Criar Edições, 1986 (1ª ed.); Travessa dos Editores, 2007 (2ª ed.).
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Wilson Bueno nasceu em Jaguapitã (PR) a 13 de março de 1949. Ainda jovem, mudou-se para Curitiba. Publicou, entre outros livros, Bolero’s Bar (1986), Manual de zoofilia (1991), Mar paraguayo (1992), Pequeno tratado de brinquedos (1996), Meu tio Roseno, a cavalo (2000), Amar-te a ti nem sei se com carícias (2004), Cachorros do céu (2005) e Diário vagau (2007). Foi um dos criadores e também editor do suplemento de ideias Nicolau e colaborou com diversos jornais, como O Estado de S. Paulo e O Estado do Paraná. Foi assassinado em sua casa, em Curitiba, no dia 31 de maio de 2010.