— Murilo Mendes
XII
É falso enxergar na música moderna um processo de reação contra a música clássica. Na verdade, essas etiquetas — clássica, romântica, moderna — obedecem mais a um critério de comodidade de referências do que a um critério propriamente filosófico ou estético. Tal método é baseado na observação do tempo: divide-se cronologicamente a produção musical, quando melhor fora que se estudassem os estados de espírito, não só do grupo social, como individuais.
A chamada música moderna, ainda mais que a pintura moderna, tem sido alvo de incríveis calúnias e incompreensões. Ainda há poucos dias, uma pessoa mais ou menos culta perguntava-me, muito a sério, se é verdade que Villa-Lobos escreve música mesmo; se usa o pentagrama e observa as claves conhecidas…
Não existe de fato oposição entre a música moderna e a clássica: existe apenas o desenvolvimento lógico de um processo artístico que se acelerou nos últimos cinquenta anos, em correspondência com o aceleramento do processo da própria existência atual e das novas condições e meios técnicos criados.
O germe da música moderna vem de longe. Não cuidem os céticos que somente Debussy, Stravinsky, Schonberg ou Schostakovich tiveram ou têm que sustentar batalhas contra os conservadores: Palestrina, Monteverdi, Gluck, Mozart, Beethoven e muitos outros introduziram novidades técnicas em suas obras, abrindo caminho aos “loucos” de hoje.
O primeiro Quarteto para Piano e Cordas, de Mozart (K. 478), foi recusado pelos editores. Já em pleno Romantismo um crítico famoso propôs que se “corrigissem” os compassos iniciais do Quarteto em Dó Maior (K. 465), do mesmíssimo Mozart.
Eis o que diz sobre o assunto o grande musicólogo Paul Bekker, conhecedor e divulgador da música clássica: “Uma opinião muito espalhada é a de que a música moderna vai por mau caminho. Faz-se a sua comparação com a música de Bach, Haydn, Mozart e Beethoven. Como se reconhecia que esta música era bela e a música moderna soa de uma maneira inteiramente diferente, tira-se a conclusão lógica de que a música moderna não é bela. Não se toma em consideração a influência da lei do menor esforço do ouvinte, esquece-se que se deve contar com a relatividade da ideia de beleza e com a variabilidade dos elementos que a compõem. Esquece-se que Bach, Haydn, Mozart e Beethoven eram tão modernos para o seu tempo como os compositores de hoje para o nosso. Esquece-se que não é arbitrariamente, mas por necessidade que os músicos jovens fazem uma música diferente. Esta necessidade provém do fato de serem homens diferentes dos seus antepassados; outro amálgama de sensações germina e vive neles e a força criadora da vida age precisamente sobre esta mentalidade diferente.”
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Conheço homens aos quais não se pode de forma alguma negar o dom da musicalidade, e que entretanto resistem com toda a energia à penetração da música moderna. Parecem-me mesmo inconversíveis. Como explicar um tal fenômeno? Por um preconceito oriundo de hábitos de rotina, por uma espécie de cristalização das faculdades estéticas. Evidentemente nem tudo é bom e digno de ser retido na vasta produção musical moderna, como de resto nem tudo é bom na produção clássica; e quanto à romântica, nem é bom falar… Mas o que nos espanta é a reação diante do princípio, diante dos novos critérios de valor estético em que se baseia a música moderna.
Parece impossível que um amador de música que compreende, sente e ama Bach, Mozart ou Beethoven não se comova diante do Quarteto ou dos Noturnos de Debussy; diante de Petrouchka ou da Sinfonia dos Salmos, de Stravinsky; diante da Bachiana nº 5 ou do Choro 10, de Villa-Lobos; ou do Concerto nº 2 para Violino, de Prokofieff. Compreenderá esse amador as audácias e novidades introduzidas por Chopin, Liszt, Schumann, Wagner, cujas composições ele ouve — e com razão — em êxtase?… Saberá ele que o velhíssimo canto gregoriano é um depositário de germes revolucionários que se entesouraram através dos séculos, tendo tido influência sensível sobre a mentalidade de muitos músicos modernos e não dos menores?…
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É fácil observar que uma das acusações mais correntes que se fazem à música moderna é que ela teria abandonado ou desprezado a melodia, passando para o primeiro plano outros elementos de ordem secundária, como seriam o ritmo e a harmonia.
Tal acusação provém de uma concepção estratificada da melodia e do seu papel no plano da composição. É difícil, de resto, definir o que seja melodia: o que se pode afirmar é que existe mais de um conceito de melodia e que, sobretudo, a melodia que é conhecida no seu sentido mais geral, isto é, o de elemento preponderante na ópera italiana do período decadente (século XIX), não pode mais exercer somente a seu modo uma influência tirânica, pois não corresponde mais às necessidades orgânicas da vida atual.
Por motivos que seria longo e fastidioso examinar e expor aqui, pode-se afirmar que na verdade os compositores modernos — pelo menos os de maior envergadura — libertaram a melodia da prisão das estafadas fórmulas oitocentistas; e, como declara o eminente musicólogo português, Fernando Lopes Graça, “a melodia contemporânea reencontrou a variedade, a riqueza e a mobilidade estrutural da melodia gregoriana e da dos velhos polifonistas, com a sua magnífica expansão linear”.
A reprodução infindável de modelos, mesmo ilustres, reduz sem dúvida a um esgotamento do interesse artístico que compromete a própria vitalidade das obras de arte, incapazes depois de períodos de repetição de produzirem a chama necessária à circulação da vida espiritual.
Voltaremos ao assunto na próxima vez.
(O cronista dirige-se à eletrola e faz passar os discos de uma das últimas composições de Prokofieff, a SONATA Nº 7, OP. 83, na execução de Wladimir Horowitz. Esta Sonata foi tocada também magistralmente, no Rio, há poucos dias, pelo novo e extraordinário pianista William Kapell.)
(“Letras e Artes”, domingo, 20/outubro/1946.)
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MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 60-64.
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Wolfgang Amadeus Mozart (1756-91)
Quarteto para Piano e Cordas (K. 478)
Piano Quartet nº 1 in G minor, K. 478 (1785)
Mozart: Piano Quartets, K. 478 & K. 493, Quartetto Avos
2014, 6 faixas, 1h
OnClassical
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Quarteto em Dó Maior (K. 465)
String Quartet nº 19 in C major, “Dissonance”, K. 465 (1785)
Mozart: String Quartet, K. 465 (“Dissonance”) & K. 464, Quartetto di Roma
2017, 8 faixas, 1h2min
La Bottega Discantica
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Claude Debussy (1862-1918)
Quarteto
String Quartet in G minor, op. 10, L 85 (1893)
Debussy: String Quartet in G Minor, op. 10, L 85, Travnicek Quartet (Vladimir Kovar, Vitezslav Zavadilik, Jan Jurik & Antonin Gal)
2010, 4 faixas, 25min
One Media Publishing
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Debussy: String Quartet; Piano Trio; 2 Danses; Rêverie; Brodsky Quartet
2012, 11 faixas, 1h5min
Chandos
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Noturnos
Nocturnes, L 91 (1897-99)
Debussy: Pierre Monteaux conducts Nocturns, L 91, Women of the Berkshire Festival Chorus
2014, 3 faixas, 22min
Ameritz Music Ltd.
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Debussy: Nocturnes; Première Rhapsodie; Jeux; La Mer; Cleveland Orchestra, Pierre Boulez, Franklin Cohen, The Cleveland Orchestra Chorus, Gareth Morrell
1995, 8 faixas, 1h10min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Igor Stravinsky (1882-1971)
Petrouchka
Petrushka (1911, rev. 1947)
Stravinsky: Petrouchka, London Symphony Orchestra, Eugene Goossens
1959, 14 faixas, 33min
Countdown Media / BMG Rights Management (US) LLC
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Stravinsky: Pétrouchka, Pierre Monteux
1960, 16 faixas, 34min
Sony Music Entertainment
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Stravinsky: Pétrouchka & Le sacre du printemps, Pierre Boulez
1969, 29 faixas, 1h8min
Sony BMG Music Entertainment
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Sinfonia dos Salmos
Symphony of Psalms, for chorus and orchestra (1930, rev. 1948)
Stravinsky conducts Stravinsky: Symphony of Psalms, Symphony in C Major & Symphony in 3 Movements
1962, 10 faixas, 1h9min
Sony BMG Music Entertainment
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Stravinsky: Symphony of Psalms; The Firebird; Ernest Ansermet, London Philharmonic
2012, 4 faixas, 43min
Past Classics
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Heitor Villa-Lobos (1887-1959)
Choro 10
Choros nº 10 for chorus and orchestra “Rasga o coração” (It Tears Out the Heart) (1926)
Heitor Villa-Lobos: Introduction to the Choros; 2 Choros bis; Choros nº 2; Choros nº 3 (“Pica-pau”); Choros nº 10 (“Rasga o Coração”); Choros nº 12; John Neschling
2009, 7 faixas, 1h19min
BIS
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Bachiana nº 5
Bachiana Brasileira nº 5 for voice and at least 8 cellos (1938-45)
Villa-Lobos: Bachianas Brasileiras 1, 4, 5, João Carlos Assis Brasil, Rio Cello Ensemble, Antonio Guedes Barbosa, Leila Guimarães
2007, 9 faixas, 45min
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Villa-Lobos: Bachiana Brasileira nº 5, W 389; Sibelius: Luonnotar, op. 70; Ravel: Shéhérazade; Leonard Bernstein
2018, 8 faixas, 44min
Sony Music Entertainment
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Sergei Prokofiev (1891-1953)
Concerto nº 2 para Violino
Violin Concerto No. 2 in G minor, op. 63 (1935)
Prokofiev: Violin Concertos 1 & 2; Sonata for two violins; Itzhak Perlman, Gennady Rozhdestvensky, Pinchas Zukerman
2008, 10 faixas, 1h5min
EMI Records Ltd.
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Sonata nº 7, op. 83
Piano Sonata nº 7 in B flat major, op. 83 (1939-42)
Prokofiev: Piano Sonata nº 7, op. 83; nº 2, op. 14; nº 8, op. 84; Mikhail Pletnev
1998, 10 faixas, 1h8min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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William Kapell plays Prokofiev Sonata nº 7 in B flat, op. 83
1953, 3 faixas, 17min
Radio Broadcast
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Prokofiev em outra interpretação de William Kapell
William Kapell Edition, vol. 4: Khachaturian: Concerto; Prokofiev: Concerto nº 3; Shostakovich: 3 Preludes
1992, 15 faixas, 1h5min
BMG Music
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