Formação de discoteca, Murilo Mendes (XII)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

XII

É falso enxergar na música moderna um processo de reação contra a música clássica. Na verdade, essas etiquetas — clássica, romântica, moderna — obedecem mais a um critério de comodidade de referências do que a um critério propriamente filosófico ou estético. Tal método é baseado na observação do tempo: divide-se cronologicamente a produção musical, quando melhor fora que se estudassem os estados de espírito, não só do grupo social, como individuais.

A chamada música moderna, ainda mais que a pintura moderna, tem sido alvo de incríveis calúnias e incompreensões. Ainda há poucos dias, uma pessoa mais ou menos culta perguntava-me, muito a sério, se é verdade que Villa-Lobos escreve música mesmo; se usa o pentagrama e observa as claves conhecidas…

Não existe de fato oposição entre a música moderna e a clássica: existe apenas o desenvolvimento lógico de um processo artístico que se acelerou nos últimos cinquenta anos, em correspondência com o aceleramento do processo da própria existência atual e das novas condições e meios técnicos criados.

O germe da música moderna vem de longe. Não cuidem os céticos que somente Debussy, Stravinsky, Schonberg ou Schostakovich tiveram ou têm que sustentar batalhas contra os conservadores: Palestrina, Monteverdi, Gluck, Mozart, Beethoven e muitos outros introduziram novidades técnicas em suas obras, abrindo caminho aos “loucos” de hoje.

O primeiro Quarteto para Piano e Cordas, de Mozart (K. 478), foi recusado pelos editores. Já em pleno Romantismo um crítico famoso propôs que se “corrigissem” os compassos iniciais do Quarteto em Dó Maior (K. 465), do mesmíssimo Mozart.

Eis o que diz sobre o assunto o grande musicólogo Paul Bekker, conhecedor e divulgador da música clássica: “Uma opinião muito espalhada é a de que a música moderna vai por mau caminho. Faz-se a sua comparação com a música de Bach, Haydn, Mozart e Beethoven. Como se reconhecia que esta música era bela e a música moderna soa de uma maneira inteiramente diferente, tira-se a conclusão lógica de que a música moderna não é bela. Não se toma em consideração a influência da lei do menor esforço do ouvinte, esquece-se que se deve contar com a relatividade da ideia de beleza e com a variabilidade dos elementos que a compõem. Esquece-se que Bach, Haydn, Mozart e Beethoven eram tão modernos para o seu tempo como os compositores de hoje para o nosso. Esquece-se que não é arbitrariamente, mas por necessidade que os músicos jovens fazem uma música diferente. Esta necessidade provém do fato de serem homens diferentes dos seus antepassados; outro amálgama de sensações germina e vive neles e a força criadora da vida age precisamente sobre esta mentalidade diferente.”

*

Conheço homens aos quais não se pode de forma alguma negar o dom da musicalidade, e que entretanto resistem com toda a energia à penetração da música moderna. Parecem-me mesmo inconversíveis. Como explicar um tal fenômeno? Por um preconceito oriundo de hábitos de rotina, por uma espécie de cristalização das faculdades estéticas. Evidentemente nem tudo é bom e digno de ser retido na vasta produção musical moderna, como de resto nem tudo é bom na produção clássica; e quanto à romântica, nem é bom falar… Mas o que nos espanta é a reação diante do princípio, diante dos novos critérios de valor estético em que se baseia a música moderna.

Parece impossível que um amador de música que compreende, sente e ama Bach, Mozart ou Beethoven não se comova diante do Quarteto ou dos Noturnos de Debussy; diante de Petrouchka ou da Sinfonia dos Salmos, de Stravinsky; diante da Bachiana nº 5 ou do Choro 10, de Villa-Lobos; ou do Concerto nº 2 para Violino, de Prokofieff. Compreenderá esse amador as audácias e novidades introduzidas por Chopin, Liszt, Schumann, Wagner, cujas composições ele ouve — e com razão — em êxtase?… Saberá ele que o velhíssimo canto gregoriano é um depositário de germes revolucionários que se entesouraram através dos séculos, tendo tido influência sensível sobre a mentalidade de muitos músicos modernos e não dos menores?…

*

É fácil observar que uma das acusações mais correntes que se fazem à música moderna é que ela teria abandonado ou desprezado a melodia, passando para o primeiro plano outros elementos de ordem secundária, como seriam o ritmo e a harmonia.

Tal acusação provém de uma concepção estratificada da melodia e do seu papel no plano da composição. É difícil, de resto, definir o que seja melodia: o que se pode afirmar é que existe mais de um conceito de melodia e que, sobretudo, a melodia que é conhecida no seu sentido mais geral, isto é, o de elemento preponderante na ópera italiana do período decadente (século XIX), não pode mais exercer somente a seu modo uma influência tirânica, pois não corresponde mais às necessidades orgânicas da vida atual.

Por motivos que seria longo e fastidioso examinar e expor aqui, pode-se afirmar que na verdade os compositores modernos — pelo menos os de maior envergadura — libertaram a melodia da prisão das estafadas fórmulas oitocentistas; e, como declara o eminente musicólogo português, Fernando Lopes Graça, “a melodia contemporânea reencontrou a variedade, a riqueza e a mobilidade estrutural da melodia gregoriana e da dos velhos polifonistas, com a sua magnífica expansão linear”.

A reprodução infindável de modelos, mesmo ilustres, reduz sem dúvida a um esgotamento do interesse artístico que compromete a própria vitalidade das obras de arte, incapazes depois de períodos de repetição de produzirem a chama necessária à circulação da vida espiritual.

Voltaremos ao assunto na próxima vez.

(O cronista dirige-se à eletrola e faz passar os discos de uma das últimas composições de Prokofieff, a SONATA Nº 7, OP. 83, na execução de Wladimir Horowitz. Esta Sonata foi tocada também magistralmente, no Rio, há poucos dias, pelo novo e extraordinário pianista William Kapell.)

(“Letras e Artes”, domingo, 20/outubro/1946.)

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MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 60-64.

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Wolfgang Amadeus Mozart (1756-91)

Quarteto para Piano e Cordas (K. 478)
Piano Quartet nº 1 in G minor, K. 478 (1785)

Mozart: Piano Quartets, K. 478 & K. 493, Quartetto Avos
2014, 6 faixas, 1h
OnClassical
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Quarteto em Dó Maior (K. 465)
String Quartet nº 19 in C major, “Dissonance”, K. 465 (1785)

Mozart: String Quartet, K. 465 (“Dissonance”) & K. 464, Quartetto di Roma
2017, 8 faixas, 1h2min
La Bottega Discantica
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Claude Debussy (1862-1918)

Quarteto
String Quartet in G minor, op. 10, L 85 (1893)

Debussy: String Quartet in G Minor, op. 10, L 85, Travnicek Quartet (Vladimir Kovar, Vitezslav Zavadilik, Jan Jurik & Antonin Gal)
2010, 4 faixas, 25min
One Media Publishing
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Debussy: String Quartet; Piano Trio; 2 Danses; Rêverie; Brodsky Quartet
2012, 11 faixas, 1h5min
Chandos
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Noturnos
Nocturnes, L 91 (1897-99)

Debussy: Pierre Monteaux conducts Nocturns, L 91, Women of the Berkshire Festival Chorus
2014, 3 faixas, 22min
Ameritz Music Ltd.
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Debussy: Nocturnes; Première Rhapsodie; Jeux; La Mer; Cleveland Orchestra, Pierre Boulez, Franklin Cohen, The Cleveland Orchestra Chorus, Gareth Morrell
1995, 8 faixas, 1h10min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Igor Stravinsky (1882-1971)

Petrouchka
Petrushka (1911, rev. 1947)

Stravinsky: Petrouchka, London Symphony Orchestra, Eugene Goossens
1959, 14 faixas, 33min
Countdown Media / BMG Rights Management (US) LLC
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Stravinsky: Pétrouchka, Pierre Monteux
1960, 16 faixas, 34min
Sony Music Entertainment
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Stravinsky: Pétrouchka & Le sacre du printemps, Pierre Boulez
1969, 29 faixas, 1h8min
Sony BMG Music Entertainment
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Sinfonia dos Salmos
Symphony of Psalms, for chorus and orchestra (1930, rev. 1948)

Stravinsky conducts Stravinsky: Symphony of Psalms, Symphony in C Major & Symphony in 3 Movements
1962, 10 faixas, 1h9min
Sony BMG Music Entertainment
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Stravinsky: Symphony of Psalms; The Firebird; Ernest Ansermet, London Philharmonic
2012, 4 faixas, 43min
Past Classics
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Heitor Villa-Lobos (1887-1959)

Choro 10
Choros nº 10 for chorus and orchestra “Rasga o coração” (It Tears Out the Heart) (1926)

Heitor Villa-Lobos: Introduction to the Choros; 2 Choros bis; Choros nº 2; Choros nº 3 (“Pica-pau”); Choros nº 10 (“Rasga o Coração”); Choros nº 12; John Neschling
2009, 7 faixas, 1h19min
BIS
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Bachiana nº 5
Bachiana Brasileira nº 5 for voice and at least 8 cellos (1938-45)

Villa-Lobos: Bachianas Brasileiras 1, 4, 5, João Carlos Assis Brasil, Rio Cello Ensemble, Antonio Guedes Barbosa, Leila Guimarães
2007, 9 faixas, 45min
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Villa-Lobos: Bachiana Brasileira nº 5, W 389; Sibelius: Luonnotar, op. 70; Ravel: Shéhérazade; Leonard Bernstein
2018, 8 faixas, 44min
Sony Music Entertainment
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Sergei Prokofiev (1891-1953)

Concerto nº 2 para Violino
Violin Concerto No. 2 in G minor, op. 63 (1935)

Prokofiev: Violin Concertos 1 & 2; Sonata for two violins; Itzhak Perlman, Gennady Rozhdestvensky, Pinchas Zukerman
2008, 10 faixas, 1h5min
EMI Records Ltd.
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Sonata nº 7, op. 83
Piano Sonata nº 7 in B flat major, op. 83 (1939-42)

Prokofiev: Piano Sonata nº 7, op. 83; nº 2, op. 14; nº 8, op. 84; Mikhail Pletnev
1998, 10 faixas, 1h8min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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William Kapell plays Prokofiev Sonata nº 7 in B flat, op. 83
1953, 3 faixas, 17min
Radio Broadcast
YouTube – link

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Prokofiev em outra interpretação de William Kapell

William Kapell Edition, vol. 4: Khachaturian: Concerto; Prokofiev: Concerto nº 3; Shostakovich: 3 Preludes
1992, 15 faixas, 1h5min
BMG Music
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“meditação (I e II)”, Diana Junkes

Ilustração (guache): Ricardo Bezerra

meditação I

as botinas são um amuleto
para quem anda agora
no telhado à procura das telhas
trincadas e das calhas cheias

tateia explora os sons
das telhas das calhas cheias
do alto pensa no mundo
que desafina sob suas
botinas:

projetos empacotados
contas a pagar
uma panela que ferve
devagar lá embaixo
na cozinha
à sua espera

*

meditação II

a faca é um amuleto
para quem corta agora
as cebolas o alho e vai
refogá-los até dourarem

aspira explora os sons
de ciranda da cebola do alho
no interior da panela
de seu posto pensa no mundo
que desafina sob a lâmina da faca:

projetos já empacotados
contas a pagar
botinas que andam
apressadas lá em cima
no telhado
e têm fome

*


Diana Junkes. sol quando agora. Ilustrações: Ricardo Bezerra; composições: Rogério Botter Maio. Bragança Paulista: Urutau, 2018.
(Para adquirir o livro, clique aqui)

Formação de discoteca, Murilo Mendes (XI)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

XI

No famoso artigo publicado em 1861 na Revue Européenne, Baudelaire declara os motivos do seu entusiasmo por Wagner. Elogia-o pela sua valorização do mito, por ter compreendido admiravelmente o caráter sagrado, divino, do mito. Tendo ido buscar em antigas lendas a matéria para seus dramas líricos, Wagner elevou de nível a música, que tornara a cair na superficialidade e na frivolidade.

Entusiasmou-se também Baudelaire pelo fato de Wagner compreender o sentido das analogias, das correspondências cuja doutrina ele estabelecera (segundo as teorias de Swedenborg) num soneto célebre. Seria surpreendente que o som não pudesse sugerir a cor, que as cores não pudessem sugerir uma melodia, e que o som e a cor fossem impróprios para traduzir ideias; as coisas tendo-se exprimido sempre por uma analogia recíproca, “desde o dia em que Deus proferiu o mundo como uma complexa e indivisível totalidade”.

Segundo ainda o autor de Les Paradis Artificiels, nenhum músico como Wagner para “pintar” o espaço e a profundidade, materiais e espirituais; e para traduzir tudo o que existe de excessivo, de imenso, de superlativo, na alma e no espírito do homem. E acrescenta elucidativamente que, escutando essa música despótica, encontrava de novo as vertiginosas concepções do ópio.

Na comovedora carta que dirigiu a Wagner em 1860, um ano antes da publicação do artigo que nos ocupa, Baudelaire confessa que, de música, só conhecia alguns trechos de Weber e de Beethoven. E já estava entrando nos quarenta anos!

*

A uma distância de quase um século do movimento romântico, estamos entretanto longe de desprezar certas teorias e certas reações das figuras do Romantismo que conhecemos melhor.

Se adotamos o conceito de música pura, poderemos talvez sorrir das complicações estéticas de Baudelaire e de Wagner, que, entretanto, são bem inocentes se as compararmos a tudo o que têm experimentado os músicos dos nossos dias. Basta compulsar um manual de música moderna para ver a que excesso de teorias e de pesquisas os músicos atuais são arrastados: o que é próprio, de resto, do espírito da nossa época, época polêmica, inquieta, agressiva e insone. A predominância do timbre leva os compositores até a usarem o serrote (que já ouvimos, de resto, aqui no Rio), além da infinidade de sistemas de atonalidade e do emprego de elementos extra-musicais como colocação de luzes, cartazes berrantes com letras disparatadas indicado os “valores” atonais de cada movimento da composição etc. etc. Não se pode mesmo acusar os escritores atuais de gostarem da música “literária” já que os músicos — inclusive músicos de gênio — são os primeiros a fazerem-na.

Com isto quero apenas acentuar que os românticos eram ainda uns inocentes do ponto de vista “literário”, e que não devemos portanto acusá-los de incompreensão da música pura…

*

Pensando bem, a reação de um simples amador de hoje, sem responsabilidade diante da crítica, nem compromisso com os teóricos de todos os matizes, pensando bem, sua reação diante da música de Wagner talvez não seja muito diferente da de Baudelaire…

Existe de fato na música de Wagner um elemento de feitiçaria. (Há muitos anos já observávamos isto, o tocador de fagote Evandro Pequeno e eu.) Tais elementos, obtidos sobretudo por um conhecimento quase incrível dos recursos da orquestra, seriam utilizados depois pelo seu discípulo Ricardo Strauss, mas, evidentemente, sem o gênio do mestre. Wagner seria uma técnica moderna a serviço de um pensamento medievalesco. É impossível deixar de vê-lo no gabinete do Dr. Fausto, sem alusão, de resto, ao Wagner comparsa do drama goetheano…

Ele mesmo declarou que suas obras são “fatos musicais tornados visíveis”. Para ele os sons tornam-se atores; a harmonia é uma ação que se representa; ao contrário, o cantor visível seria um som que se tornaria verbo, e a ação cênica é uma ilustração do acontecimento harmônico.

Ainda segundo Paul Bekker, a atual oposição de Verdi a Wagner (que não estranhamos em muitos, mas sim em Stravinsky) provém menos do contraste de concepções musicais do que dos meios empregados, que por sua vez dependem do caráter nacional de cada compositor. Wagner coloca na orquestra o centro de gravidade do acontecimento musical, ao passo que Verdi faz da voz humana o refletor desse acontecimento.

*

Na admirável carta que dirigiu a Berlioz, Wagner revela como encontrou no drama da Grécia antiga o princípio de seu ideal artístico. É interessante notar que Mallarmé se inspirou na mesma concepção, ao escrever o ensaio sobre o Cerimonial, a que aludi na crônica passada. De resto, Mallarmé celebrou Wagner em prosa e verso. Não esqueçamos também este detalhe importante: na mesma carta Wagner assinala que se preocupa em elevar o nível artístico do público — o que não será um pequeno motivo de glória. Imagine-se agora, com o recuo do tempo, o que não terá sido sua luta, sobretudo na Paris de 1860, em que predominam a canção ligeira, a opereta, o espírito do music-hall!

*

Mas… não se pode disfarçar o lado antipático de Wagner: o seu ideal de universalidade (baseado na grandeza do mito) chocou-se com o seu nacionalismo exaltado. Como perdoar ao homem que escreveu no frontal da sua casa em Bayreuth: “Eu faço música para o povo alemão”?

Que o artista queira se inspirar em motivos nacionais, está certo; mas fazer arte só para seu povo… conduz à negação do espírito internacional e atenta contra o próprio princípio indiscutível da unidade do gênero humano. Que diferença de Mozart, que aos vinte e dois anos escrevia a seu pai: “Creio estar em condições de honrar qualquer país que seja. Se a Alemanha, minha cara pátria, de que me orgulho, não me quer acolher, será preciso, por Deus, que a França ou a Inglaterra se enriqueçam com mais um hábil alemão — e isto, para vergonha da nação alemã.”

O fato é que, principalmente durante a guerra, quando ouvíamos Wagner pelo rádio, nos enervávamos. “Excessivamente alemão e belicoso” — era nossa sensação imediata. “O músico predileto de Hitler.” De qualquer forma, uma discoteca, mesmo modesta, não pode dispensar os Prelúdios das óperas — e não só os Prelúdios do 1º ato. Para estes maravilhosos trechos da música wagneriana é que vão as minhas predileções. Se bem que páginas como o Idílio de Siegfried, a Viagem de Siegfried ao Reno, o Encantamento da Sexta-feira Santa e os Coros de Parsifal, além de outros, sejam fonte eterna de deslumbramento.

(O cronista dirige-se à eletrola e faz passar o disco do PRELÚDIO DE LOHENGRIN, na execução da NBC Symphony Orchestra, sob a regência de Arturo Toscanini.)

(“Letras e Artes”, domingo, 13/outubro/1946.)

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MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 54-59.

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Richard Wagner (1813-83)

Prelúdios, Aberturas
&
Idílio de Siegfried
Siegfried Idyll, WWV 103 (1870)
&
Encantamento da Sexta-feira Santa
Parsifal, WWV 111: Act III: Good Friday Spell (1877-82)

Wagner: Preludes, Arturo Toscanini, NBC Symphony Orchestra
1951, 7 faixas, 1h4min
Sony Music Entertainment
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Wagner: Tannhäuser Overture; Siegfried-Idyll; Tristan und Isolde; Jessye Norman, Wiener Philharmoniker, Herbert von Karajan
1988, 4 faixas, 54min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Wagner: Overtures & Preludes, Karl Böhm, Rafael Kubelik, Herbert von Karajan, Eugen Jochum, Otto Gerdes
2005, 13 faixas, 2h24min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Wagner: Siegfried Idyll; Overtures & Preludes; Berliner Philharmoniker, Rafael Kubelik, Wiener Philharmoniker, Karl Böhm
2013, 6 faixas, 1h13min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Tristão e Isolda
Tristan und Isolde, WWV 90 (1857-59)

Richard Wagner: Tristan und Isolde, Wilhelm Furtwängler, Philharmonia Orchestra
1953, 82 faixas, 4h15min
EMI Records Ltd
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Tetralogia (O Anel do Nibelungo)
Der Ring des Nibelungen (The Ring of the Nibelung), WWV 86 (1876)
&
Viagem de Siegfried ao Reno
Götterdämmerung, WWV 86D / Prologue: Orchesterzwischenspiel (Siegfrieds Rheinfahrt) (1856–71)

Richard Wagner: Der Ring des Nibelungen [Bayreuth 1952], Joseph Keilberth
1952, 168 faixas, 13h51min
Archipel
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Richard Wagner: Der Ring des Nibelungen, Wiener Philharmoniker, Sir Georg Solti
2014, 178 faixas, 14h36min
Decca Music Group Limited
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Parsifal
Parsifal, WWV 111 (1877-82)

Wagner: Parsifal, Berliner Philharmoniker, Herbert von Karajan
1981, 38 faixas, 4h15min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Três trilhas rumo a chãos de dentro

Sílvio Diogo

Coincidiu de eu terminar, quase ao mesmo tempo, a leitura de três livros de ficção escritos por autores brasileiros contemporâneos. Não sei se em virtude dessa circunstância de leitura, ou dos pontos de contato entre os temas abordados, a verdade é que fui desenhando ao longo da travessia diálogos de uma obra a outra. Os livros são os seguintes: Um estranho sonho de futuro (2004), de Daniel Munduruku; Zumbi assombra quem? (2017), de Allan da Rosa; e Duração (2017), de Luís Novais.

Daniel Munduruku. ‘Um estranho sonho de futuro’. Ilustrado por Andrés Sandoval. 1. ed. São Paulo: FTD, 2004.

Ritos de passagem: eis o termo que me ocorre para sintetizar a ligação entre as narrativas. Daniel Munduruku conta a viagem que empreendeu em companhia do garoto Lucas, um adolescente paulistano (ou um pariwat, palavra usada pelo povo Munduruku para designar os não índios), em direção à aldeia Katõ, no Estado do Pará, local de nascimento do escritor. O livro parte, portanto, de um acontecimento real, recriado literariamente. A longa travessia inclui não só as etapas do avião, dos barcos, da espera, dos contratempos da viagem, do momento da volta, mas também o progressivo envolvimento de Lucas com os indígenas — especialmente com as crianças, embora não apenas com elas — e a própria experiência de regresso do “homem feito” Daniel Munduruku à sua aldeia natal. A conexão dos indígenas com os espíritos ancestrais será, para o menino Lucas, um misto de hesitação, encanto e reeducação do olhar; e, para o autor-narrador, uma espécie de reencontro ritual. O sonho de futuro evocado no título guiará personagens e leitores pelos caminhos da floresta.

Allan da Rosa. ‘Zumbi assombra quem?’ Ilustrações: Edson Ikê. 1. ed. São Paulo: Editora Nós, 2017.

Faltou dizer, sobre Um estranho sonho de futuro, que se trata de uma ficção voltada ao público infanto-juvenil, tal como Zumbi assombra quem?, de Allan da Rosa. Neste último livro, contudo, o cotidiano e a memória estão entrelaçados de tal forma na tessitura literária que é mais difícil definir as linhas entre real e imaginário. Cabajuara é uma forma de dizer Jabaquara, bairro da zona sul de São Paulo marcado por forte presença negra. A fórmula das perguntas e respostas, do enigma, da sabedoria ancestral que se desvenda aos poucos a partir do quintal e do terreiro, marcará os dialógos do menino Candê com o Tio Prabin. O livro divide-se em 19 capítulos, que poderíamos chamar de episódios ou cenas, já que a cada passo o narrador propõe a nós, leitores(as), um ângulo diverso de mirada. Lê-se melhor Zumbi em voz alta, não só porque a oralidade se entranha na escrita de Allan da Rosa, mas pela evocação de um saber da experiência: Candê, “aquele menino grande de sete anos”, vai traduzindo o que ouve — dos adultos e das outras crianças — para a sua própria língua, os seus lábios, a sua pele. Se Zumbi não é um morto-vivo, um fantasma, uma alma penada, como Tio Prabin ensina, por que então Candê e outras crianças negras continuam a ser chamadas de sujas? De onde vêm a chacota, o distanciamento, a repulsa? A mãe de Candê, Manta, também conta histórias; também ama, erra, sorri, desanima e levanta-se. Conheceremos dona Cota Irene, Andinho, Germano, Nívea e alguns dos frequentadores do bar de Manta. Ouviremos aos pouquinhos, tal como Candê, as peripécias, bravuras e voos de Zumbi dos Palmares. Ouviremos tal como os pernilongos, porque o livro nos pega de jeito: “Os pernilongos sentaram na beira na cama, cruzaram suas pernas e firmaram não picar o guri se a história que começava fosse bacana”.

Luís Novais. ‘Duração’. 1. ed. São José dos Campos: Do autor, 2017.

Duração, de Luís Novais, não é uma ficção infanto-juvenil; tampouco é uma narrativa que se classifique facilmente quanto ao gênero. Na página de créditos lemos que o livro consiste numa “miscelânea”, mas mesmo esta indicação não nos parece muito segura. Somos levados a acompanhar, a cada mancha breve de texto sobre a página, tensões entre escrita e silêncio, fragmento e inteireza, o instante e a duração. O caráter fragmentário que rege a composição manifesta-se nas imagens do estilhaço, do mosaico, das “mil luzes que iluminam o chão”. E o narrador não deixará de problematizar a própria relação com o leitor: dirá sobre a rasura, a resposta, a falta de resposta, o “gesto de despedida sem destinatário”, mas dirá também sobre fios, redes, sonhos e danças, sobre palavras em chama, sobre a contemplação, o rio e o amor. Dividido em sete partes, Duração nos deixará ver que um rito de passagem corre subterraneamente pela matéria textual: a experiência do luto, ou mais especificamente, a perda do pai. Se logo de início — no primeiro fragmento, “Mãos úmidas” — tomamos contato com a morte do pai, só aos poucos teremos a experiência do estado de gestação, da duração, e para isso precisaremos mobilizar os nossos próprios ritos, os nossos desejos e dúvidas, em suma, a travessia da leitura, que nos permitirá aceder aos “pequenos milagres que toda e qualquer pessoa pode realizar assim, por equívoco”.

Eis, portanto, algumas das ligações que a leitura dos três livros traz à tona: a figura do pai, do tio, do guia ou mentor espiritual; a longa duração do saber que vem da experiência; a travessia da dor, da perda, da saudade; as “janelas que podem dar acesso ao sagrado” em Duração; “o canto sussurado” que chama “a saúde pro amanhã”, o amor que “dilui a raiva” e “esmigalha a bruteza” em Zumbi assombra quem?; o voo dos pássaros “que é como uma escrita” em Um estranho sonho de futuro.

Heloisa Prieto, na apresentação ao livro de Daniel Munduruku, escreve que “adoecer é sinônimo de perder a conexão com os espíritos ancestrais”. Que a travessia pelas luminosas trilhas rumo a chãos de dentro — desvendadas por Daniel, Allan e Luís — fortaleça nossa compreensão acerca dos segredos do tempo, do convívio com a diferença, do respeito pelas coisas invisíveis e do simples prazer de não pensar em nada (coisas não muito fáceis nos dias que correm, diga-se de passagem).

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Daniel Munduruku. Um estranho sonho de futuro. Ilustrado por Andrés Sandoval. 1. ed. São Paulo: FTD, 2004. / 112 p.
Para adquirir o livro, clique aqui

Allan da Rosa. Zumbi assombra quem? Ilustrações: Edson Ikê. 1. ed. São Paulo: Editora Nós, 2017. / 96 p.
Para adquirir o livro, clique aqui

Luís Novais. Duração. 1. ed. São José dos Campos: Do autor, 2017. / 92 p.
Para adquirir o livro, escreva diretamente ao autor pelo e-mail novais.vqfe@gmail.com

Formação de discoteca, Murilo Mendes (X)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

X

A palavra virtuosidade tornou-se hoje suspeita aos meios musicais eruditos, se bem que disponha ainda de prestígio perante o grande público. Na verdade ela é hoje empregada mais em sentido pejorativo do que em sua antiga acepção.

O fato é que a virtuosidade, no início do romantismo, não queria dizer qualidade imitativa, mas qualidade criadora. Nós sabemos que os amigos da virtuosidade, Liszt e Paganini, eram espíritos criadores. Oficialmente atribui-se a esses dois músicos a inauguração da virtuosidade; mas se — conforme Paul Bekker e outros eminentes musicólogos — a virtuosidade consiste principalmente no dom de improvisação, Mozart já poderá ser considerado um perfeito virtuose. Os documentos da época testemunham do seu fabuloso dom de improvisador; entre inúmeros episódios, ficariam famosos o do Concerto em Praga, na época do lançamento de Don Giovanni, em que ele improvisou ao piano durante hora e meia, sobre motivos de Nozze de Figaro, e o do Concerto de Órgão em Leipzig, quando improvisou com tal grandeza e majestade que Doles, o discípulo de Bach, exclama deslumbrado: “João Sebastião ressuscitou!”

A virtuosidade é, pois, uma concentração da força, uma exploração dos recursos da sonoridade instrumental; é a técnica a serviço da concepção unitária e espiritual da obra e não a finalidade desta.

Já tenho observado pessoas reagirem diante de Liszt, como se se tratasse de um músico preocupado apenas com os efeitos exteriores e brilhantes. Neste ponto ele se acha tão prejudicado quanto Chopin — quero dizer, prejudicado pelo abuso de pianistas que martelam interminavelmente rapsódias, tarantelas, La Campanella e não sei mais quantos números de êxito assegurado diante do público, e contra os quais projetei mesmo, uma vez, fundar uma companhia de seguros.

Entretanto, em muitas de suas obras Liszt atinge um nível artístico superior. Basta lembrar os Doze estudos de execução transcendentes, as admiráveis sinfonias corais Fausto e Dante, os poemas sinfônicos Os Prelúdios, Prometeu, a Missa de Grau [Missa de Gran], o oratório Christus e — last but not least — a prodigiosa Sonata em Si Menor.

É sabido que Schumann tinha dado primitivamente à sua Sonata para Piano em Fá Menor, op. 14, o título de Concerto sem Orquestra. Dedicando sua Sonata a Schumann, parece que Liszt o acompanharia na mesma intenção. De fato o plano grandioso da obra, a amplitude de suas proporções (que talvez não tenha sido ultrapassada nem pelo próprio Beethoven) dão-lhe o aspecto de um Concerto — e de fato o é, com muito mais razão, pelo menos, do que o Concerto Italiano de Bach, que é uma Sonata clássica bem típica.

A Sonata em Si Menor sempre provocou em mim — em diversas vezes que me foi dado ouvi-la por pianistas de passagem pelo Rio — uma emoção e um interesse especiais. Sua gravidade, a atmosfera de noturna poesia e áspera inquietação conduzem o ouvinte à sugestão de que se acha diante de um drama metafísico, aumentando-se ainda tal convicção pela unidade orgânica da obra, que anuncia de longe as famosas intenções cíclicas de César Franck e até mesmo o descobrimento de novas sonoridades. Poucas obras musicais, na verdade, me têm dado esta forte sensação do pensamento trabalhando sobre si mesmo e voltando sempre a um ponto nuclear, o que oferece um testemunho a mais desta grande composição: a de que o homem, desde o princípio, recebeu um germe que se desdobra em tempos diversos e quer sempre dizer a mesma coisa, que não é outra senão afirmar o Verbo.

Segundo críticos ilustres, a situação de Liszt como compositor será sempre sujeita a flutuações. A personalidade do homem Liszt, de resto, é tão maravilhosa e tão forte, que chega às vezes a predominar sobre a do músico. De qualquer maneira, não se pode negar que obras como a Sonata ou como a sinfonia coral Fausto possuem elementos de permanência, elementos de grandeza suficientes para atravessarem os tempos.

Assistimos nestes últimos anos a este espetáculo extraordinário e imprevisto: um dos maiores compositores da nossa época, aquele que encarnou o gênio da invenção, o homem que praticou experiências musicais de toda espécie, o Picasso da música — assistimos Stravinski, no seu livro Poétique musicale, onde se reúnem suas conferências dadas na Universidade de Harvard, tomar posição contra Wagner, a favor de Verdi!

O autor de Sacre du Printemps denuncia no sistema wagneriano a tendência arte-religião, a retórica pseudomística e guerreira, o mal-entendido que procura fazer do drama um composto de símbolos, e da própria música um objeto de especulação filosófica. Declara que existe mais substância musical e mais invenção verdadeira na simples ária “La donna é mobile” que na retórica e nas vociferações da Tetralogia.

Eis aí um sinal típico do declínio da “religião wagneriana”. Da religião wagneriana, friso, mas não música wagneriana, que não pode morrer assim de um momento para outro… Não à toa que o esplendor do movimento wagneriano coincide com a decadência religiosa do século XIX. Concebeu-se então o drama lírico como a reunião de todas as artes — o que de fato a Igreja Católica já realizara: isto provocou de Mallarmé um ensaio admirável, em geral cuidadosamente escondido: Cérémonials. Citarei algumas passagens do mesmo, devido à relação que têm com o assunto em foco: “Quelle représentation, le monde y tient…” e “J’ai le sentiment, dans ce sanctuaire, d’un agencement dramatique exact, comme je sais que ne le montra autre part jamais séance constituée pour un tel objet.” E esta notável observação: “Contrairement par exemple aux usages d’opéra où tout advient pour rompre la céleste liberté de la mélodie, sa condition, et l’entraver par la vraisemblance du développement régulier humain”. (Vers et Prose, Librairie Perrin & Cie., 18. ed., pp. 195, 215.)

Esse ensaio denuncia claramente as insuficiências do cerimonial leigo. Ora, é evidente que Wagner quis realizá-lo na ópera. Sentiu-o, antes de ninguém, Baudelaire: é o que transparece no seu célebre estudo sobre Richard Wagner, publicado em 1861, na Revue Européenne.

Na próxima crônica faremos um pequeno comentário a respeito.

(O cronista dirige-se à eletrola e faz passar os discos da Sonata em Si Menor de Liszt, na execução de Vladimir Horowitz.)

(“Letras e Artes”, domingo, 6/outubro/1946.)

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MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 48-53.

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Franz Liszt (1811-86)

Doze estudos de execução transcendentes
S. 139, Études d’exécution transcendante (12 Transcendental Etudes) (1851)

Liszt: Douze études d’exécution transcendante, S. 139, Lazar Berman
1963, 12 faixas, 1h3min
Diapason
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Liszt Complete Piano Music, vol. 2: Études d’exécution transcendante, Jenö Jandó
1997, 12 faixas, 1h3min
Naxos
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Liszt: 12 Études d’exécution transcendante, Alice Sara Ott
2009, 12 faixas, 1h6min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Sonata em Si Menor
S. 178, Piano Sonata in B minor (1852-53)

Liszt: Sonata in B minor; Nuages gris; Unstern! – Sinistre; La Lugubre Gondola; Richard Wagner: Venezia; Maurizio Pollini
1990, 5 faixas, 45min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Liszt: Sonate pour piano en si mineur, S. 178, Claire-Marie Le Guay
2011, 3 faixas, 33min
Decca Records France
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Liszt: Piano Sonata in B minor, S. 178 (1953 – Stuttgart Studio Recording), Nikita Magaloff
2018, 3 faixas, 26min
SWR Classic Archive
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Début Recital (Chopin, Brahms, Liszt, Ravel, Prokofiev), Martha Argerich
1995, 18 faixas, 1h11min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Os Prelúdios, Prometeu
S. 97, Les préludes (Symphonic Poem n. 3) (1850-55); S. 99, Prometheus (Symphonic Poem n. 5) (1855)

Liszt: Les Préludes; Tasso; Prometheus; Michel Plasson, Václav Neumann, Leipzig Gewandhaus Orchestra & Dresden Philharmonic Orchestra
1998, 3 faixas, 50min
Edel Records GmbH
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Sinfonias corais Fausto e Dante
S. 108, Faust Symphony (Eine Faust-Symphonie; A Faust Symphony) (1854; 1857-61; 1880) / S. 109, Dante Symphony (Eine Symphonie zu Dantes Divina Commedia; A Symphony to Dante’s Divina Commedia) (1855–56)

Liszt: A Faust Symphony; Dante Symphony; Les Préludes; Prometheus; Chicago Symphony Orchestra, Chicago Symphony Chorus, London Philharmonic Orchestra, Sir Georg Solti, L’Orchestre de la Suisse Romande, Jesús López-Cobos
2000, 8 faixas, 2h27min
Decca Music Group Limited
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Liszt: A Faust Symphony, Leonard Bernstein, Boston Symphony Orchestra, Kenneth Riegel
1977, 3 faixas, 1h17min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Christus (oratório)
S. 3, Christus (1866-72)

Liszt: Christus, Benita Valente, Marjana Lipovsek, Peter Lindroos, Tom Krause, James Conlon, Rotterdam Philharmonic Orchestra, Slovak Philharmonic Chorus
1984, 14 faixas, 2h53min
Erato Classics S.N.C. / Warner Classics, Warner Music UK
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Missa de Gran
S.9, Missa Solennis zur Erweihung der Basilika in Gran (1869)

Liszt: Missa Solennis zur Erweihung der Basilika in Gran, “Gran Festival Mass”, János Ferencsik
2014, 6 faixas, 56min
Hungaroton
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Interpretação de Vladimir Horowitz

Horowitz plays Liszt, Vladimir Horowitz
1930, 33 faixas, 4h2min
Sony Music Entertainment
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Richard Wagner (1813-83)

Tetralogia (O Anel do Nibelungo)
Der Ring des Nibelungen (The Ring of the Nibelung), WWV 86 (1876)

Richard Wagner: Der Ring des Nibelungen [Bayreuth 1952], Joseph Keilberth
1952, 168 faixas, 13h51min
Archipel
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Richard Wagner: Der Ring des Nibelungen, Wiener Philharmoniker, Sir Georg Solti
2014, 178 faixas, 14h36min
Decca Music Group Limited
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Igor Stravinsky (1882-1971)

A Sagração da Primavera
The Rite of Spring (Le Sacre du printemps) (1913)

Stravinsky: The Rite of Spring, Pierre Monteux
1951, 14 faixas, 31min
Sony Music Entertainment
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Stravinsky: Le Sacre du printemps, Igor Stravinsky conducts Columbia Symphony Orchestra
1962, 14 faixas, 31min
Sony BMG Music Entertainment
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Stravinsky: Pétrouchka & Le Sacre du printemps, Pierre Boulez
1969, 29 faixas, 1h8min
Sony BMG Music Entertainment
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Stravinsky: L’Oiseau de Feu; Le Sacre du Printemps; Perséphone; San Francisco Symphony, Michael Tilson Thomas
1999, 31 faixas, 2h9min
BMG Entertainment / BMG Music
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Formação de discoteca, Murilo Mendes (IX)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

IX

Schumann! Poucos músicos haverá que nos invoquem tanto como o autor dos Estudos Sinfônicos, o criador dessa atmosfera especial que lhe é própria, gerada talvez pelo seu perpétuo conflito entre a razão e o sentimento, o pródigo inventor de tantas peças poéticas em que transparece em muitas passagens o gênio; Schumann, anunciador de um novo estilo musical… Entretanto, é bom não confundir: se essa bizarra atmosfera schumanniana, como a de Chopin, agrada tanto aos poetas, não é só pelo dado “estranho”; é pela sua intensa musicalidade. O que faltou a Schumann… e aqui dou a palavra ao meu amigo e ilustre crítico Andrade Muricy, no seu livro Caminho de Música, sobre o qual há dias falei aqui: “O que faltou a Schumann foi a íntima interpretação das suas altas faculdades, que, se tivesse ocorrido, teria feito dele um criador sólido e eterno, como João Sebastião Bach, a mais perfeita personificação do equilíbrio vivo das faculdades criadoras. Naquela grande personalidade houve paralelismo do espírito e instinto, da razão e fantasia. Paralelismo, pois a fusão dos elementos só se dava em momentos breves e paroxísticos.”

Não se poderia dizer melhor. Falta a Schumann o fator decisivo de vitalidade construtiva, que dá a supremacia a Bach, e dá a Mozart a preeminência sobre Chopin, no juízo lúcido e insuspeito de George Sand.

Mas, incompletado ou não, Schumann consegue muito mais do que nos emocionar: consegue nos tirar fogo do espírito — tudo o que Beethoven exigia da música. É, sem dúvida, por vezes, mórbido, enervante e deprimente — mas é também exaltante e tônico, como no Carnaval, na Sinfonia Renana etc.

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A vida de Schumann comporta episódios de singular grandeza. O seu amor a Clara Wieck, os obstáculos que teve que superar para conquistá-la, depois a harmonia, a firmeza e gravidade de sua união, inscrevem-se entre os fastos gloriosos da história do homem. Roberto e Clara Schumann (se o mundo durar, já se vê, o que parece meio problemático…), Roberto e Clara Schumann, com o perpassar dos tempos, serão transfigurados pelo espírito alegórico dos povos; passarão um dia à categoria dos amantes imortais, como Dante e Beatriz, Romeu e Julieta, Fausto e Margarida… E se falo em Romeu e Julieta, Fausto e Margarida, é que eles têm um existência histórica ainda mais patente que a de João e Maria da Silva…

Outro aspecto exemplar da grandeza de Schumann consiste em ter tomado consciência do seu profundo desequilíbrio, e ter-se esforçado por dominá-lo: procurando sempre organizar sua vida material, ao mesmo tempo que organizava sua vida artística e que atacava a rotina do meio ambiente, exercendo intensa atividade crítica e jornalística. Com o estudo acurado da obra de Bach, procurou suprir o equilíbrio que, devido a um defeito original, lhe faltava. Aparentemente, a desordem triunfou, pois, como é sabido, Schumann tentou afogar-se e terminou sua vida numa casa de alienados; mas sua biografia e sua própria música elucidam sua luta patética pela conquista da unidade.

*

Schumann declarou mais de uma vez em seus escritos que, para ele, a relação entre a música e o fato poetizado é indiscutível; e que a ideia poética é o natural ponto de partida da composição. Com isto ele protegeu a priori todos os que se alimentam da poesia da sua música, contra a rígida ortodoxia de certos críticos que consideram a poesia da música um simples fenômeno de literatice.

A crítica universal coloca — e justamente — acima de tudo, no conjunto da produção de Schumann, as peças para piano solo. Nunca é demais se recomendar a audição contínua dessas obras-primas de inspiração e fatura, que se chamam Carnaval, Kreisleriana, Cenas de crianças, Novelletten, Estudos Sinfônicos, Carnaval de Viena e tantas outras. Mencionamos também o seu único e maravilhoso Concerto para Piano e Orquestra em Lá Menor, op. 54. Mas é preciso não esquecer as Sonatas para Piano, op. 11, op. 14, op. 22, além das personalíssimas Fantasias, op. 12 e op. 17.

Chamo entretanto a atenção dos amadores para duas extraordinárias obras-primas: o Quinteto para Piano e Cordas em Mi Bemol, op. 44 e o Trio para Piano, Violino e Violoncelo em Ré Menor, op. 63. Qualquer das duas representa em alto grau o melhor do espírito schumanniano, qualquer das duas constitui uma síntese das tendências de Schumann.

Também de grau de importância é a série de lieder, muitos dos quais sobre poesias de Goethe, Schiller, Heine. A produção de lieder de Schumann, se não é tão vasta quanto a de Schubert, aparenta-se à deste pela sua qualidade musical e pela atmosfera dramática e sonhadora, própria do romantismo alemão.

O amador interessado não deixe, portanto, de adquirir a imortal série de lieder — dezesseis — que se chama Dichterliebe — Os Amores do Poeta. Existe uma gravação excelente em disco, com Lotte Lehmann, ajudada por Bruno Walter ao piano. Imaginem que dupla! Lotte Lehmann — Bruno Walter!

Schumann escreveu três Quartetos para Cordas (op. 41, nos. 1, 2 e 3) e um Quarteto para Piano, op. 47. A crítica em geral não põe essas composições no mesmo plano da obra para piano, ou dos lieder. O mesmo se dá com suas quatro Sinfonias, que padecem da incompletação a que se referiu anteriormente, isto é, à falta de unidade linear.

Confesso, entretanto, que me agradam esses Quartetos, especialmente o já mencionado com Piano. É verdade que a atmosfera dos três Quartetos é particularmente abafada e angustiosa: entramos no clima do Hölderlin das poesias mais fechadas, ou, melhor, de certas novelas de Kafka.

Pessoalmente, considero-os muito mais herméticos que os de Beethoven, e muito mais modernos do que românticos. Não são evidentemente obras para o grande público. Mas é possível que eles encerrem a terceira intimidade de Schumann, o Santo dos Santos do seu espírito.

Quanto às Sinfonias, todas elas têm bons trechos, cintilações geniais; ei-las, pela ordem do catálogo: nº 1, em Si Bemol, op. 38 (Primavera); nº 2, em Dó Maior, op. 61; nº 3, em Mi Bemol, op. 97 (Renana); nº 4, em Ré Menor, op. 120. Se querem saber, minhas preferências inclinam-se para a nº 3: parece-me a mais orgânica de todas.

(O cronista dirige-se à eletrola e faz passar os discos do QUINTETO EM MI BEMOL, op. 44, de Schumann, na execução do Quarteto Busch, com Rudolf Serkin ao piano.)

(“Letras e Artes”, domingo, 15/setembro/1946.)

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MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 42-47.

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Robert Schumann (1810-56)

Estudos Sinfônicos
Op. 13, Symphonic Studies (Études symphoniques) (1834)

Schumann: Piano Works, Wilhelm Kempff
2001, 103 faixas, 4h56min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Carnaval
Op. 9, Carnaval (1834-35)

Schumann: Carnival / Kreisleriana, Mitsuko Uchida
1995, 29 músicas, 1h7min
Decca Music Group Limited / Universal International Music B.V.
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Sonatas para Piano, op. 11, op. 14, op. 22
Op. 11, Grand Sonata No. 1 in F-sharp minor (1835); Op. 14, Grand Sonata No. 3 in F minor, Concerto Without Orchestra (1835); Op. 22, Piano Sonata No. 2 in G minor (1833–1835)

Robert Schumann: Three Sonatas for Piano, Beatrice Berrut
2014, 11 faixas, 1h12min
Doron Music
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Fantasias, op. 12 e op. 17
Op. 12, Fantasiestücke (Fantasy Pieces) (1837); Op. 17, Fantasie in C (1836, revised 1839)

Schumann: Fantasia, op. 17; Fantasiestücke, op. 12; Martha Argerich
1976, 11 faixas, 52min
Sony Music Entertainment Italy S.p. A.
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Kreisleriana
Op. 16, Kreisleriana (1838)

Schumann: Kreisleriana, op. 16; Wieck-Variations, op. 15; Toccata in C Major, op. 7, Vladimir Horowitz
1962, 23 faixas, 1h1min
Sony Music Entertainment
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Cenas de crianças
Op. 15, Kinderszenen (Scenes From Childhood) (1838)

Schumann: Kinderszenen, op.15; Kreisleriana, op. 16; Waldszenen, op. 82; Wilhelm Kempff
2000, 30 faixas, 1h12min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Schumann: Scenes from Childhood, op. 15, Peter Schmalfuss
2016, 13 faixas, 19min
Countdown Media GmbH / BMG
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Novelletten
Op. 21, Novelletten (Novelettes) (1838)

Schumann: Novelletten, op. 21, Nicholas Roth
2004, 8 faixas, 48min
Blue Griffin Recordings Inc.
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Carnaval de Viena
Op. 26, Faschingsschwank aus Wien (1839)

Schumann: Faschingsschwank aus Wien, op. 26, Dejan Sinadinovic
2013, 6 faixas, 28min
Kns Classical
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Schumann: Kinderszenen, op. 15; Faschingsschwank aus Wien, op. 26; Carnaval, op. 9; Daniel Barenboim
1991, 39 faixas, 1h12min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Lieder / Dichterliebe – Os Amores do Poeta
Op. 24, Liederkreis (Heine), nine songs (1840); Op. 33, 6 Lieder (part songs for men’s voices with piano ad lib) (1840); Op. 48, Song cycle, Dichterliebe, sixteen songs from Heine’s Buch der Lieder (1840)

Schumann: Dichterliebe, Lotte Lehmann, Bruno Walter
2000, 16 faixas, 26min
Maestoso
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Schumann: Dichterliebe, op. 48; Liederkreis, op. 24; Mark Padmore, Kristian Bezuidenhout
2010, 30 faixas, 1h8min
Harmonia Mundi USA
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Quartetos para Cordas (op. 41, nos 1, 2 e 3)
Op. 41, Three String Quartets in A minor, F and A (1842)

Schumann: String Quartets. op. 41, Eroica Quartet
2000, 14 faixas, 1h18min
Harmonia Mundi USA
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Quinteto para Piano e Cordas em Mi Bemol, op. 44 / Quarteto para Piano, op. 47
Op. 44, Piano Quintet in E flat (1842); Op. 47, Piano Quartet in E flat (1842)

Schumann: Piano Quartet, op. 47; Piano Quintet, op. 44; Leonard Bernstein, Glenn Gould, The Juilliard Quartet
1969, 8 faixas, 57min
Sony Music Entertainment
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Schumann: Piano Quintet, op. 44; Piano Quartet, op. 47; Stéphane De May, Damien Pardoen, Philippe Koch, Pierre Henri Xuereb, Luc Tooten
2015, 8 faixas, 57min
Pavane Records
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Concerto para Piano e Orquestra em Lá Menor
Op. 54, Piano Concerto in A minor (1845)

Schumann: Concerto for Piano and Orchestra in A Minor, op. 54, Rudolf Serkin, Eugene Ormandy
1948, 3 faixas, 28min
Sony Music Entertainment
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Schumann: Piano Concerto in A minor, op. 54, Van Cliburn, Fritz Reiner, Chicago Symphony Orchestra
1960, 3 faixas, 30 min
Sony Music Entertainment
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Schumann: Piano Concerto, op. 54; Piano Quintet, op. 44; Gérard Caussé, Maria João Pires, Jian Wang, Renaud Capuçon, Augustin Dumay, Claudio Abbado, Chamber Orchestra of Europe
2000, 7 faixas, 1h1min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Trio para Piano, Violino e Violoncelo em Ré Menor, op. 63
Op. 63, Piano Trio No. 1 in D minor (1847)

Schumann: Piano Trios nos 1 & 2 (opp. 63 & 80), Schweizer Klaviertrio – Swiss Piano Trio
2011, 8 faixas, 58min
Ludger Boeckenhoff Audite Musikproduktion
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Sinfonias: nº1, em Si Bemol, op. 38 (Primavera); nº 2, em Dó Maior, op. 61; nº 3, em Mi Bemol, op. 97 (Renana); nº 4, em Ré Menor, op. 120
Op. 38, Symphony No. 1 in B flat, Spring (1841); Op. 61, Symphony No. 2 in C (1845–46); Op. 97, Symphony nº 3 in E flat major, Rhenish (1850); Op. 120, Symphony No. 4 in D minor (1841; revised in 1851)

Schumann: Symphonies nos 1 & 2, Leonard Bernstein, New York Philharmonic
1963, 8 faixas, 1h14min
Sony Music Entertainment
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Schumann: Symphonies nos 3 & 4, Leonard Bernstein, New York Philharmonic
1961, 9 faixas, 1h3min
Sony Music Entertainment
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Schumann: Symphonies nos 1-4, Overture, Scherzo & Finale, Wolfgang Sawallisch
1973, 20 faixas, 2h28min
EMI Records Ltd.
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Schumann: The Symphonies, Chamber Orchestra of Europe, Yannick Nézet-Séguin
2014, 17 faixas, 2h4min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Formação de discoteca, Murilo Mendes (VIII)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

VIII

Schubert, se não é um caso de precocidade tão notável quanto a de Mozart, pois começou a compor aos quatorze anos, é um caso de genialidade que o aproxima do autor da Flauta Mágica. Tendo morrido aos trinta anos, deixou uma obra espantosamente grande, sabendo-se que escreveu mais de seiscentos lieder, afora uma quantidade de peças para piano, quartetos, trios, quintetos, sinfonias etc. A importância histórica de Schubert consiste em ter dado o mais amplo desenvolvimento à forma particular da canção alemã, que ele conseguiu elevar à universalidade. Mas em Schubert não existe apenas sentimento, graça e fantasia: existe por vezes uma força dramática de rara intensidade, trágica mesmo, como por exemplo nas Canções do moleiro, na Viagem Invernal, na trágica Sinfonia em Dó, nº 7 etc. A importância de Schubert como compositor é tal que se pode afirmar que a harmonia de Schumann e de Liszt provêm diretamente dele. Na qualidade de compositor instrumental, a crítica dá-lhe um lugar logo atrás de Beethoven, sendo um músico dotado de grande beleza melódica.

Schubert reflete o lado mais simpático da alma alemã, o lado sonhador e visionário; e nos seus lieder realizou um verdadeiro equilíbrio entre fantasia e sentimento. O valor de sua experiência espiritual e humana pode ser bem aquilatado nos admiráveis lieder que chamaremos, em versão aproximada para a nossa língua: Olhar distante, supremo, magnífico; Cronos; Pôr-de-sol; Nostalgia do lar; Tu não me amas; e que em alemão se chamam respectivamente: Weite, hohe, herrliche Blick [Weit, hoch, herrlich der Blick]; Schwager Kronos [An Schwager Kronos]; Abendrot [Im Abendrot]; Heimweh [Das Heimweh]; Du liebst mich nicht.

Recomendo também ao amador interessado qualquer destas obras de elevada categoria artística: Quartetos em Lá Menor e em Ré Menor; os Quintetos para cordas e piano, os Trios com piano em Si Bemol; a já citada Sinfonia nº 7 em Dó e a “Inacabada” em Si Menor, que, embora popularíssima, é de primeira ordem, com um lançamento do tema sinistro, digno de Beethoven.

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Creio que poderia me dispensar de falar sobre discos de Chopin, tal é o conhecimento que todos têm de sua obra, difundida, martelada e deformada até o excesso, até o crime, por milhões de pessoas. Mas como é possível que haja algum amador que ainda não tenha resolvido o “caso Chopin” do ponto de vista de seleção de discos, quero registrar aqui uma sugestão: aquele que não quiser comprar Chopin às toneladas escolha uma obra representativa do seu gênio, e não a toque de manhã à noite, para não acabar enjoando… Escolha, por exemplo, o monumento dos vinte e quatro PRELÚDIOS, ou então os Scherzi, ou as quatro Baladas, ou as duas Sonatas. Entre os inumeráveis Estudos, como decidir, se todos admiráveis? E as Mazurcas de incomparável beleza e refinamento? (De passagem, indico um pequeno disco maravilhoso: Mazurca em Dó Sustenido Menor, na interpretação de Vladimir Horowitz, disco Victor 1327.)

A propósito de Chopin, há o difícil problema da eleição do pianista. Os amigos já devem ter percebido que não acendo velas a Brailovski — o que não quer dizer que lhe negue grandes qualidades. Apenas acho que seu Chopin é mais brailovskiano do que chopiniano… Qual intérprete, portanto, escolher? É preciso notar que só me refiro a discos que se tenha probabilidade de adquirir no momento. Indicaria, portanto, Cortot, Rubinstein, Horowitz, Louis Kentner, até que chegue o dia milagroso que o nosso André Gide se resolva a gravar para a cera, já que, segundo nos revelou em um dos seus livros, ele é o único intérprete autorizado de Chopin que existe neste mundo…

Qual o critério que deve presidir à confecção de uma antologia? Apesar dos pesares, com todos os defeitos e falhas que surgem, ainda o critério de gosto pessoal é o que prevalece — “et pour cause”… No caso da organização desta antologia sonora que é uma discoteca, o leitor já deve ter notado que omiti muitos nomes, e nomes ilustres. Quero pois frisar que além de motivo de gosto e inclinações pessoais, encarei a hipótese de uma discoteca particular de proporções nada vastas — digamos entre trezentos e quinhentos discos. Previsto este plano, como encaixar certos autores que têm importância na história geral da música, mas que não incluímos no primeiro plano de nosso agrado? Não desconheço, por exemplo, o papel histórico de Weber, no desenvolvimento da ópera alemã; sei muito bem que ele deu (helás!) a mão a Wagner, sei que em Freichütz e Oberon há passagens deliciosas; mas confesso que posso passar perfeitamente sem Weber. Como posso passar muito bem sem o correto Mendelssohn, se bem que encontre grandes belezas no oratório Elias, no Octeto, op. 20, nos Romances sem palavras e em outras obras significativas da literatura pianística, como as peças de op. 7 e op. 54 etc.

Também não me diz muito o fato de Berlioz ter grande importância histórica devido a ter inaugurado a música de programa; o que não quer dizer que não reconheça o grandioso plano de concepção da Sinfonia Fantástica e de certos trechos da Danação de Fausto e de outras óperas. Se vamos por este caminho, até em Carlos Gomes encontraremos alguma coisa muito boa…

Nao. A tal discoteca deverá ser muito selecionada e o lado “documentário” não lhe interessa muito. Pensemos principalmente nos músicos fundamentais. Agora, no caso de uma discoteca pública para fins de divulgação da história geral da música, é claro que seria imperdoável a exclusão, por exemplo, de Leocavallo, Mascagni e “tutti quanti”…

(“Letras e Artes”, domingo, 8/setembro/1946.)

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MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 37-41.

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Franz Schubert (1797-1828)

Schubert: Die schöne Müllerin, Thomas Quasthoff, Justus Zeyen
2005, 20 faixas, 1h1min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
Spotify – link

Schubert: Die schöne Müllerin, James Gilchrist, Anna Tilbrook
2009, 20 faixas, 1h5min
Orchid Classics
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Schubert: Winterreise, Gerald Moore, Dietrich Fischer-Dieskau
2003, 24 faixas, 1h11min
EMI Music
Spotify – link

Schubert: The “Great” C Major Symphony, Orchestra Mozart, Claudio Abbado
2015, 4 faixas, 1h2min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Schubert: Lieder, Christoph Prégardien, Michael Gees
1996, 24 faixas, 1h14min
EMI Records Ltd. / EMI Electrola GmbH
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Schubert: Lieder, Mitsuko Shirai, Hartmut Höll
1988, 19 faixas, 1h5min
Capriccio
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Schubert: Lieder, Elly Ameling, Dalton Baldwin
1974, 16 faixas, 45min
Universal International Music B.V. / Decca Music Group Limited
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Schubert: Lieder (1952-54), Elisabeth Schwarzkopf, Edwin Fischer, Herbert von Karajan
2008, 16 faixas, 1h12min
Naxos
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Schubert: String Quartets nº 14 in D minor, D 810 (“Death and the Maiden”) & nº 13 in A minor, D 804 (“Rosamunde”), Alban Berg Quartett
2013, 8 faixas, 1h12min
EMI Records Ltd.
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Franz Schubert: Quintets D 956 & D 8, Quatuor Sine Nomine, François Guye & Michael Wolf
2000, 6 faixas, 1h6min
Claves Records
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*

Frédéric Chopin (1810-49)

Chopin: Preludes, op. 28 (Original album 1946), Arthur Rubinstein
2012, 24 faixas, 36min
Crates Digger Music Group
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Chopin: Préludes, Impromptus, Barcarolle, Berceuse, Alfred Cortot
1934, 31 faixas, 1h8min
EMI Records Ltd.
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Chopin: Ballades, Scherzi, Tarantelle (Rubinstein Collection, vol. 45), Arthur Rubinstein
1999, 9 faixas, 1h14min
BMG Entertainment
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Chopin: Piano Sonata nº 2 in B-Flat Minor, op. 35 & nº 3 in B Minor, op. 58, Arthur Rubinstein
1961, 8 faixas, 47min
Sony Music Entertainment
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Chopin: Sonatas opp. 4, 35, 58, Howard Shelley
2015, 12 faixas, 1h19min
Narodowy Instytut Fryderyka Chopina / The Fryderyk Chopin Institute
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Horowitz: Favorite Chopin
1963, 20 faixas, 1h17min
Sony BMG Music Entertainment
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Chopin: Piano Sonata nº 3; Études, op. 25, Nelson Freire
2002, 19 faixas, 59min
Decca Music Group Limited
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Chopin: Études (complete), Zlata Chochieva
2014, 27 faixas, 1h4min
Piano Classics Ltd.
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The Complete Chopin Mazurkas, Joanna MacGregor
2017, 57 faixas, 2h16min
SoundCircus
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Chopin: Mazurkas, Masako Ezaki
2006, 57 faixas, 2h27min
Octavia Records Inc.
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Chopin: Ballades, Mazurkas, Polonaises, Piotr Anderszewski
2003, 11 faixas, 1h
EMI Records Ltd. / Virgin Classics
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Formação de discoteca, Murilo Mendes (VII)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

VII

Insisti na crônica anterior sobre a alta categoria dos Quartetos de Beethoven, preferindo situá-los, antes de tudo, no plano da pura musicalidade, já que sua interpretação pode ser marcada ad libitum, desde que se compreenda a atmosfera de gravidade e transcendência em que todos eles se situam; atmosfera, repito, que é própria, mais do que a qualquer outra, à nossa geração. Porque na verdade nós herdamos de nossos maiores a angústia, o desajusamento entre o interior e o exterior, que se acentuaram nos últimos três séculos e que chegam à culminância no momento em que vivemos. Por isso participamos vivamente da consciência de Beethoven, embora ele muitas vezes nos oprima com essa atmosfera especial de terror e desconsolo, pelo que procuramos os caminhos de libertação de Bach, Mozart, Haendel ou Debussy, menos duros a pessoas já naturalmente castigadas pela vida como todos nós agora.

O que não se deve é particularizar a interpretação dos Quartetos. O próprio Beethoven já advertia os pósteros a respeito do sentido da Sinfonia Pastoral: que ninguém procurasse ali uma cópia da natureza: “Deixo ao ouvinte o cuidado de achar a situação…” Se nessa Sinfonia, onde se poderia descobrir sem dificuldade uma intenção pictórica, Beethoven se recusa a fazer música imitativa, com muito menos razão encontraremos intenções didáticas nos Quartetos. O que eles querem dizer, cada um captará de acordo com os elementos próprios, certo, entretanto, a priori, de que eles se inscrevem sob o signo da gravidade da condição humana.

Assinalemos, também, que o amador disposto a ouvir e assimilar todos os Quartetos estará mais apto a abordar a música moderna, essa pobre música moderna de que se fala tanto mal, e que nos fins das contas não é moderna: é música. Se continuarem a sujeitar a arte ao critério do tempo, a confusão será geral…

*

Continuando a passar em revista, embora muito sucintamente, os Quartetos, chegamos a uma das produções mais atraentes do segundo período de Beethoven: o Quarteto em Mi Bemol Maior, op. 74, também chamado Quarteto das Harpas. Entretanto, não se cuide que Beethoven teve em mira imitar, pelos “pizzicatti” dos instrumentos próprios do Quarteto, o som da harpa. Terá sido mera coincidência. Mais uma vez devemos nos precaver dos perigos da arte imitativa.

Este Quarteto, embora afirmativo e forte, não possui a violência dos demais do segundo e terceiro períodos. Desenvolve-se numa atmosfera especial de lirismo, e em muitas passagens a sombra de Mozart se interpõe até chegarmos às maravilhosas variações do último movimento.

O Quarteto em Fá Menor, op. 95, composto em 1810, encerra o terceiro período. Quarteto de menores proporções que os outros mas, talvez por isso mesmo, de uma trama cerrada, apresentando uma visível compressão de matéria sonora. O famoso primeiro movimento “allegro con brio”, por si só, constitui um retrato espiritual de Beethoven, enérgico e violento: o homem atacando seu próprio destino, na consciência da força de seu antagonista. Mais uma das muitas explosões desse grande Espanhol que é Beethoven…

*

Durante quatorze anos o Mestre não produzia Quartetos. Já o terceiro período vai adiantado… e aqui fazemos um pequeno parêntese. A teoria de W. de Lenz é hoje mais ou menos aceita em toda parte; entretanto, é possível que sofra revisões, pois uma obra como o Quarteto Rasumovski nº 3, pelo seu espírito, poderia talvez figurar dignamente na lista do terceiro período… Mas não estamos aqui para discutir teorias musicais. Segue a música. Dizíamos que já o terceiro período ia adiantado, quando Beethoven subitamente retorna aos Quartetos, com o extraordinário Quarteto em Mi Bemol Maior, op. 127. Meu reino (ou um pão!) por este Quarteto, ai meu Deus! se não existisse o 131… O Quarteto op. 127 logo de início abala o ouvinte, preparando-o para o sublime “adagio ma no troppo e molto cantabile”, oração musical com o seu tema que é um eco do Benedictus da Missa Solene.

Passamos ao Quarteto em Si Bemol Maior, op. 130, que Vincent d’Indy chama de monumental — como se os outros também não o fossem. Chamo a atenção para o andante deste Quarteto, aparentemente monótono, mas que contém expressões que é lícito julgar das mais íntimas de Beethoven.

O Quarteto em Dó Sustenido Menor, op. 131, é uma das obras mais elevadas do espírito humano, e representa uma síntese prodigiosa de toda a arte de Beethoven, sendo o mais revolucionário de todos, pois — excento num único movimento — foge à antiga forma-sonata. A um amador que desejasse ter um só dos Quartetos, e a obra talvez mais representativa do gênio de Beethoven, eu indicaria este sem hesitação. O adágio inicial é, segundo Wagner, a página mais melancólica que jamais foi escrita. Mas a desforra vem no incomparável final, verdadeira dança de furor, entusiasmo, terror sagrado, sofrimento, sei lá mais o quê…

O Quarteto em Lá Menor, op. 132, tornou-se famoso na literatura devido ao romance Counterpoint, de Huxley. É no terceiro movimento que se encontra o Canto de Ação de Graças a Deus por um Convalescente, onde o espírito religioso de Beethoven atinge talvez o seu momento máximo.

A Grande Fuga, op. 133, é o primitivo final do Quarteto op. 130. Todo o drama da nossa época está contido nessa página extraordinária, que às vezes nos produz um terrível mal-estar.

O último Quarteto, em Fá Menor, op. 135, não apresenta a mesma grandeza dos precedentes. É visível a repetição do processo, o cansaço do Mestre. Mas isto não quer dizer que não contenha passagens admiráveis, dignas dos outros. Quanto aos intérpretes dos Quartetos, mencionaremos pela ordem de nossas preferências pessoais: Quarteto Busch, Quarteto de Budapest, Quarteto Lener.

(O cronista dirige-se à eletrola e faz passar os discos do extraordinário QUARTETO EM FÁ MAIOR, OP. 59, Nº 1 — RASUMOVSKI —, pelo Quarteto Busch.)

(“Letras e Artes”, domingo, 18/agosto/1946.)

*

MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 32-36.

*

Ludwig van Beethoven (1770-1827)

Beethoven: String Quartets opp. 74 & 95, Fine Arts Quartet
1965, 8 faixas, 50min
Countdown Media / BMG Rights Management (US) LLC
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Beethoven: Late String Quartets opp. 127, 130, 131, 132, 135, 133, Yale String Quartet
2006, 27 faixas, 3h11min
Musical Concepts
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Beethoven: The Late Quartets, opp. 127-135, Quatuor Mosaïques, Erich Höbarth, Andrea Bischof
2017, 26 faixas, 3h9min
Naïve, a Label of Believe Group
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Beethoven: String Quartets nº 14, op. 131, Jasper String Quartet
2014, 7 faixas, 36min
Sono Luminus
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The Busch Quartet plays Beethoven (opp. 59, 131, 95, 132)
2006, 20 faixas, 2h11min
Preiser Records
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Beethoven: The Late String Quartets, The Budapest String Quartet
1997, 27 faixas, 3h8min
Bridge Records, Inc.
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Formação de discoteca, Murilo Mendes (VI)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

VI

Conta-se que certa senhora, após ouvir num salão Beethoven tocar uma de suas sonatas, dirigiu-se ao mestre e perguntou-lhe como ele próprio interpretava aquela obra, isto é, qual a significação que lhe atribuía. Beethoven dirigiu-se outra vez ao piano e tornou a tocar a sonata, acrescentando no fim: “Eis a interpretação que lhe dou.”

Relembrei este episódio a propósito dos Quartetos de Beethoven, cuja significação é tão discutida. Na verdade, esses Quartetos — cumes da música universal — espantam os auditores comuns que já têm o espírito prevenido pelo que já leram em manuais de música. O amador comum vê em qualquer Quarteto de Beethoven um autêntico papão musical. Alguns, mais corajosos, declararam: “Chegarei até lá, mas v. compreende… é preciso iniciação.” De fato, para tudo é preciso iniciação…

Criou-se em torno dos Quartetos de Beethoven uma aura de hermetismo, uma atmosfera de penumbra que no fim de contas só vem servir aos teósofos. Muitos críticos afirmam esse hermetismo, mais por hábito e espírito de rotina. Os Quartetos de Beethoven participam, sem dúvida, do hermetismo que é próprio a muitas obras de arte tidas como claras e acessíveis a qualquer pessoa. Se quisermos carregar na interpretação, se quisermos esmiuçar o conteúdo de uma obra, poderemos extrair, por exemplo, das Baladas de Chopin, aparentemente tão fáceis, três ou quatro sentidos — inclusive o metafísico.

Evidentemente se o nosso propósito fosse o de Degas — o de “décourager les arts” — poderíamos insistir no hermetismo dos Quartetos e de muitas outras importantes produções musicais. Mas o nosso propósito, se bem que modesto, é o ajudar alguns a se elevarem; e ajudar os elevados a se elevarem mais ainda. Diremos, pois, que a linguagem sonora dos Quartetos de Beethoven é a linguagem universal do indivíduo cultivado, isto é, saiu da individualidade complexa e poderosa de Beethoven e, como tal, marca uma fisionomia que é própria do grande mestre; e ao mesmo tempo pode servir a todos os homens cultivados no esclarecimento de seus mais íntimos e mais fortes problemas morais e espirituais. Ouvindo-os, meditando-os e assimilando-os, não só participareis das lutas, dos sofrimentos, das derrotas e da esperança de Beethoven, como também Beethoven participará de vossos sofrimentos, vossas lutas, vossas derrotas e vossa esperança. O homem de mediana cultura que não encontrar, em certas passagens dos Quartetos, muito de si mesmo, de seus problemas, de suas dúvidas e afirmações, é um homem para quem a vida é um acidente casual e não pode ter a profunda e transcendente significação que de fato tem; é um homem que não viveu e passa como uma sombra.

Abordar os Quartetos de Beethoven é um dever precípuo de todo homem que deseja elevar o seu nível cultural. Que o amador comum, isto é, o leigo, não se espante nem desanime com a lenda do hermetismo que se estabeleceu em torno deles. Ao contrário do que escreveu Pierre Jean Jouve, não vemos em Beethoven apenas o homem da Revolução Francesa, o filho espiritual de Rousseau. Sua linguagem sonora parece-nos particularmente própria (sobretudo nos Quartetos) a exprimir a vida moral e espiritual do homem da nossa época, comprimido entre guerras e revoluções, com os nervos à flor da pele diante das contínuas notícias que chegavam (e chegam…) sobre campos de tortura, gritos de terror, existências sufocadas, legiões de homens em marcha para a treva, o desconhecido, o abismo.

Nos Quartetos de Beethoven, muito mais do que nas Sinfonias, Sonatas e Concertos, observa-se o abandono das concessões, a perda dos detalhes decorativos. Apesar do aparente transbordamento, na verdade a matéria sonora adquire uma gravidade de que apenas se tem a antecipação em certos Quartetos muito maduros de Haydn ou de Mozart. É preciso acentuar, para encorajar os desanimados, que os processos técnicos de Beethoven, em última análise, obedecem, em princípio, às disposições clássicas; isto é, seguem o tipo da antiga forma-sonata, exceto no Quarteto op. 131; a diferença mais sensível reside no desenvolvimento temático, quando surgem em combinação três ideias diversas, ao invés da antiga forma, cujo desenvolvimento era muito menos amplo.

Ao amador que se interesse em conhecer e cultivar os Quartetos de Beethoven, recomendo o livro especializado de J. de Marliave, ilustre militar que se imortalizou com essa obra extraordinária de carinho, compreensão e amor: monumento imperecível erguido à glória do grande Mestre.

*

Quanto aos discos, cumpre assinalar que se acham gravados todos os Quartetos de Beethoven. O amador poderá começar pelos seis da primeira série op. 18, que guardam relação mais próxima com os de Haydn e Mozart. O melhor é mesmo seguir os Quartetos pela ordem cronológica. Depois de “ruminar”, como dizia Santo Agostinho, os seis primeiros, ao amador tomará conhecimento dos três dedicados ao Príncipe Rasumovski: op. 59, nº 1, 2 e 3. Nunca poderei dizer qual deles é o melhor. O amador será arrastado no turbilhão do nº 1, deter-se-á no sublime adágio noturno do nº 2, no andante do nº 3 com seus famosos “pizzicati”, em que parece pulsar o coração de Beethoven, isto é, do próprio Homem…

Como o espaço está minguando, completarei as notas sobre os Quartetos na próxima crônica.

(“Letras e Artes”, domingo, 11/agosto/1946.)

*

MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 27-31.

*

Ludwig van Beethoven (1770-1827)

Beethoven: String Quartets, op. 18, 1-6, Tokyo String Quartet
2007, 24 faixas, 2h26min
Harmonia Mundi
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Beethoven: String Quartets, op. 59, Razumovsky, String Quintet, op. 29, Kujiken Quartet
2011, 16 faixas, 2h17min
Challenge Classics
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Beethoven: String Quartets, op. 131 & op. 135, The Lindsays
1992, 11 faixas, 1h7min
Sanctuary Records Group Ltd. / BMG Company
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Formação de discoteca, Murilo Mendes (V)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

V

O grande Haydn merece todo o carinho e atenção ao tratarmos da escolha de seus discos. Pela sua maravilhosa inteligência ordenadora, pela sábia elaboração de seus Quartetos e Sinfonias, pela rara generosidade de sua natureza, pela influência poderosa que exerceu na formação de músicos como Mozart e Beethoven; por ter fixado, de acordo com o ideal moderno, antigas formas musicais, determinando mesmo, segundo pensam críticos autorizados, a transição entre a época clássica e a romântica, conforme atestam seus Quartetos de 1773, denunciadores de uma verdadeira crise de romantismo — por tudo isto, e por mais outros motivos — Haydn ocupa um lugar de relevo entre os mais importantes criadores musicais. É preciso insistir neste aspecto da força ordenadora e reguladora de sua inteligência, pois anda por aí, bastante espalhada, a lenda da “bobice” de Haydn. Ele teve muito tempo para trabalhar: sua produção, enorme, se estende durante uns sessenta anos; mas sua primeira sinfonia conhecida foi escrita já aos vinte e sete anos. Essa fabulosa produção caracteriza-se por uma ânsia constante de aprimoramento dos meios técnicos. Alfredo Einstein, o eminente musicólogo, assim se refere a respeito dos métodos haydnianos: “Havia nele força e gravidade; suas criações surgem da experiência, de acontecimentos vividos, são figuras de um programa secreto.”

O lado vienense, o lado “humour” da natureza de Haydn oculta aos olhos (e aos ouvidos…) de muitos sua grandeza e profundidade. O mesmo aconteceu ao seu amigo Mozart. “Suas criações surgem da experiência”: na verdade Haydn acumulou experiência sobre experiência no vasto laboratório do palácio Esterhazy. De suas façanhas, não foi a menos ilustre a que conduziu ao desenvolvimento do trabalho temático para maior extensão das partes da forma-sonata. E quando do quarteto, Haydn inventa uma nova aplicação do contraponto, produz um desdobramento temático que confere maior riqueza e independência dos membros da composição. Ao mesmo tempo que lhe confere maior unidade. Tendo-se elevado muito acima de seus antecessores no quarteto, sob o ponto de vista da dignidade da linguagem musical e da amplitude das formas, Haydn abre as portas a Mozart e Beethoven, que atingiram o máximo na realização do quarteto… Se bem que um enriquecimento dessa forma musical se tem ainda verificado, com o único exemplar do gênero, saído muitos anos depois da pena genial de Debussy!

*

Gostaria de despertar no espírito de alguém que ainda não a conhece o interesse pela música de Haydn, que nunca é deprimente; ao contrário, é exaltante e emprega diversas vezes a linguagem do fogo. Seu “humour”, repito, não o impede de ser grave e severo em muitas ocasiões.

Quanto aos discos, no momento não é muito fácil encontrá-los por aqui, salvo no que diz respeito a sinfonias. Das cento e vinte, mais ou menos reconhecidas como autênticas, é com renovado prazer que sempre ouviremos qualquer destas, que se acham gravadas: Milagre — nº 96, em Ré Maior; Salomão nº 1; nº 98, em Si Bemol; nº 100 (Militar), em Sol Maior; nº 101 (Relógio); nº 102, em Si Bemol; nº 104 (Londres).

Dos quartetos, menciono qualquer uma das séries op. 20 e op. 33; e também o último, nº 83, op. 103. Qualquer dos “quartetos russos” poderá ser igualmente adquirido sem medo.

Indico ainda a admirável Sonata para Piano nº 1, em Mi Bemol — na bela interpretação de Horowitz — e o Concerto de Cravo, op. 21, magnificamente executado na parte de solo, por Wanda Landowska. O que aí está apontado basta para dar uma ideia bem nítida da grandeza de Haydn.

*

Beethoven é hoje, depois de Chopin, o músico mais conhecido e difundido no mundo inteiro. Talvez, por isso, fosse supérfluo fazer aqui a indicação de discos do grande mestre. Mas de qualquer maneira, não se pode deixar de mencioná-los, mesmo porque, se Beethoven é, definitivamente, um dos maiores, o critério de preferências está longe de ser fixo. O amador comum atira-se vorazmente às Sinfonias: não o criticarei por isso. As Sinfonias já passaram em julgado e já se sabe que são obras das mais importantes da música universal. Entretanto, no plano de uma discoteca de trezentos ou quatrocentos discos, eu não aconselharia a compra da Terceira ou Nona, por exemplo: além de terem proporções muito vastas, o que dificulta sua audição contínua, são obras que, pela sua natureza própria, exigem contágio coletivo; além disso são continuamente transmitidas pelo rádio. Indicaria antes a Quarta, em Si Bemol, op. 60, ou a Oitava, em Fá, op. 93.

Das Sonatas para Piano, o amador comum voa logo para a Apassionata, a dita Ao Luar ou a dita Aurora, e ainda aqui lhe dou razão, pois se trata, é claro, de obras-primas, mas, aos que as conhecem, aponto algumas Sonatas mais “escondidas”; por exemplo, em Fá, op. 54; e outra também em Fá, op. 78, esta, injustamente tachada de insípida por Vincent d’Indy. Ao amador de grande classe será preciso lembrar as últimas, op. 109, 110 e 111, ou esse prodigioso poema de solidão e despojamento que é a Sonata em Si Bemol Maior, op. 96?… (Confesso minhas preferências por esta Hammerklavier Sonata). E será preciso relembrar também as extraordinárias “33 Variações sobre uma Valsa de Diabelli, op. 120”?…

Dos cinco Concertos de Piano, apesar da merecida fama do majestoso e batizado “Imperador”, minhas preferências inclinam-se para o nº 4 em Sol Maior, op. 58. O terceiro Concerto é também soberbo.

Não se esqueça o incomparável Trio em Si Bemol, op. 97, Ao Arquiduque, uma das obras mais representativas do gênio de Beethoven.

Propositadamente deixei para a próxima crônica as referências às produções mais elevadas e sublimes de Beethoven, as menos populares: OS QUARTETOS.

(“Letras e Artes”, domingo, 28/julho/1946.)

*

MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 22-26.

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Joseph Haydn (1732-1809)

Sinfonias

Haydn: Symphonies 93, 96 ‘Miracle’ & 98, English Chamber Orchestra, Jeffrey Tate
1992, 12 faixas, 1h15min
EMI Records Ltd.
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Haydn: Symphony in G Major, Hob. I: 100, Military; Symphony in B-flat major, Hob. I: 102; Symphony in D Major, Hob. I: 104, London, Leonard Bernstein
1959, 12 faixas, 1h15min
Sony Music Entertainment Inc.
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Haydn: Symphonies nº 93 & nº 101, “The Clock”, Chamber Orchestra of Europe, Claudio Abbado
1990, 8 faixas, 48min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Quartetos

Haydn: String Quartets, vol. 1 – op. 20 – 1-3, Kocian Quartet
2016, 12 faixas, 1h
Orfeo
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Haydn: Quatuors, op. 33, Quatuor Mosaïques, Erich Höbarth, Andrea Bischof
1997, 24 faixas, 2h1min
Auvidis France
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Haydn: String Quartets opp. 77, 42 & 103, The Lindsays
2006, 14 faixas, 1h15min
Sanctuary Records Group Ltd. / BMG Company
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Interpretações de Vladimir Horowitz e Wanda Landowska

Haydn: Piano Sonatas; Clementi: Piano Sonatas; Adagio sostenuto in F Major & Adagio in A minor (volume 7), Vladimir Horowitz
1967, 12 faixas, 1h1min
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Joseph Haydn, Wanda Landowska
2008, 12 faixas, 1h2min
M.A.T. Music Theme Licensing Ltd.
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Ludwig van Beethoven (1770-1827)

Sinfonias

Beethoven: Symphony nº 4, op. 60 & Leonore Overture, op. 72 (Remastered), George Szell, Cleveland Orchestra
2018, 5 faixas, 45min
Sony Music Entertainment
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Beethoven: Symphony nº 8 in F Major, op. 93, Stuttgart Radio Symphony Orchestra, Hans Müller-Kray
2014, 4 faixas, 25min
SWR Classic Archive
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Sonatas para piano

Beethoven: Piano Sonatas op. 57, “Apassionata”; op. 27, 2, “Moonlight”; & op. 53, “Waldstein”, Vladimir Horowitz
2004, 9 faixas, 1h3min
Sony Music Entertainment
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Beethoven: Sonatas opp. 53, 54, 57, Richard Goode
1995, 8 faixas, 57min
Nonesuch
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Beethoven: Piano Sonatas opp. 79, 79, 14, 49, Mari Kodama
2010, 15 faixas, 1h7min
PentaTone
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Beethoven: Sonatas opp. 109, 110 & 111, Antti Siirala
2012, 8 faixas, 1h5min
Bayerischer Rundfunk / Avi-Service for music, Cologne/Germany
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Beethoven: Violin Sonatas nº 9, op. 47, & nº 10, op. 96, Gidon Kremer, Martha Argerich
1995, 7 faixas, 1h5min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Beethoven: Diabelli Variations, op. 120, Yameng Huang
2016, 34 faixas, 52min
Nightberry
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Concertos de piano

Beethoven: Piano Concerto nº 4 in G Major, op. 58, Van Cliburn
1963, 3 faixas, 33min
Sony Music Entertainment
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Beethoven: Concerto nº 5, “Emperor”; Piano Sonata nº 28, Hélène Grimaud, Staatskapelle Dresden, Vladimir Jurowski
2007, 8 faixas, 1h5min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Beethoven: Piano Concertos nº 3 & nº 4, Royal Concertgebouw, Mitsuko Uchida, Kurt Sanderling
1996, 6 faixas, 1h11min
Universal International Music B.V.
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Trio de pianos

Beethoven: Piano Trio nº 7, op. 97; Piano Trio nº 4, op. 11, Pablo Casals
2008, 8 faixas, 1h16min
Classic Themes
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Formação de discoteca, Murilo Mendes (IV)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

IV

IV

Mozart é um dos autores mais gravados em discos. É verdade que deixou uma obra enorme, e ainda falta muita coisa importante dele a ser reproduzida na cera. Mas o fato é que o amador que se dispuser a iniciar sua “mozarteana” não poderá deixar de se sentir muito embaraçado.

Porque Mozart fascina de maneira singular todos os que penetram esse universo que é o seu espírito musical, onde tantas são as moradas.

Das suas óperas, quatro da maior importância, cumes do drama lírico, estão gravadas: Don Giovanni, A Flauta Mágica, Bodas de Fígaro e Così fan tutte. Se me pedissem para escolher entre as quatro, eu escolheria Don Giovanni. Não que seja mais perfeita que as Bodas, por exemplo; é que representa no conjunto das obras de Mozart uma experiência grandiosa, de proporções verdadeiramente cósmicas. É ouvindo, sentindo e assimilando esse incomparável drama — “dramma giocoso” —, que se poderá melhor compreender a verdadeira natureza de Mozart, que teria ouvido todos os segredos do céu e do “inferno”. Stendhal escreveu que, para ouvir Don Giovanni, não hesitaria em caminhar duas léguas atolado na lama — o que ele mais detestava no mundo. Eis um dos belos pensamentos de Stendhal sobre Mozart: “La science de l’Harmonie peut faire tous les progrès qu’on voudra supposer, on verra toujours avec étonnement que Mozart est allé au bout de toutes les routes. Ainsi, quant à la partie mécanique de son art, il ne sera jamais vaincu.”

Quem não puder comprar os discos das quatro óperas citadas, contente-se com as aberturas e algumas árias.

*

Resolvida a questão da escolha das óperas (ou de trechos das mesmas), acha-se o amador diante de uma lista imensa de discos de música de câmara e música sinfônica de Mozart: quintetos, quartetos, concertos de piano e orquestra, sinfonias, missas, trios, divertimentos, concertos e sonatas para diversos instrumentos, enfim… é um mundo de sugestões que se abre diante do pobre cidadão, alucinado com tanta música, tanta grandeza, tão grande variedade de aspectos num único homem, num único artista.

Guiando-o nessa complicada via, indicarei ao amador, mais ou menos por ordem de importância, as seguintes obras, todas representativas, em alto grau, do grande Wolfgang. Os quintetos resumem a intimidade, por assim dizer, do espírito mozartiano: Quinteto para cordas em Dó Maior, K. 515; em Sol Menor, K. 516; em Ré Maior, K. 593; Quinteto para clarinete e cordas, em Lá Maior, K. 581. Infelizmente não se acha gravado o famoso Quinteto dos pássaros (em Mi Bemol, K. 614); mas, se por um feliz acaso, souberem amanhã da sua existência em discos, atirem-se a ele com furor…

Vem a seguir a imortal série de obras-primas, os SEIS QUARTETOS DEDICADOS A JOSEF HAYDN (em Sol Maior, K. 387; em Ré Menor, K. 421; em Mi Bemol, K. 428; em Si Bemol, K. 458; em Lá Maior, K. 464; e em Dó Maior, K. 465).

O amador que adquirisse somente estas seis obras — nada mais de vinte discos — poderia estar certo de possuir um monumento definitivo da arte mozartiana, e de toda a arte musical. E se eu tivesse de escolher dois dentre os seis Quartetos, decidir-me ia pelo segundo, em Ré Menor, K. 421 — e o nº 6, em Dó Maior, K. 465, também chamado “dissonante”. É verdade que a partitura do Quarteto em Lá — K. 464 — foi copiada pela mão do próprio Beethoven, que escreveu à margem: “Eis uma obra. Eis um homem. Eis o que Mozart poderia dar sempre ao mundo — se este o quisesse.” Enfim, qualquer dos seis poderá ser comprado no escuro, pois todos são admiráveis.

Da extensa lista de sinfonias, é obrigatória a citação das quatro últimas: em Ré Maior, K. 504 — Praga; em Mi Bemol, K. 543; em Sol Menor, K. 550; em Dó Maior, K. 551 — Júpiter. Das quatro, minha preferência pessoal oscila entre Praga e “Sol Menor”; se bem que o final prodigioso de Júpiter… Das outras sinfonias de menores proporções, indico a em Si Bemol Maior, K. 319, obra de encanto, de segurança matemática; e a Sinfonia-serenata em Ré Maior — K. 385.

Mas passemos depressa aos Concertos de piano, refúgio da fantasia poética mais refinada, diálogos prodigiosos entre o piano e orquestra, fonte perene de surpresas e deslumbramentos! Indico estes três maravilhosos concertos de câmara: em Lá Maior, K. 414; em Mi Bemol, K. 449; em Sol Menor, K. 453. Entre os de maiores proporções, o Concerto em Dó Maior, K. 467, e o em Dó Menor, K. 491. Mas, como deixar de lado essas três “feéries” que se ouvem com prazer único — os Concertos em Fá Maior, K. 459; Lá Maior, K. 488, e em Mi Bemol, para dois pianos, K. 365?… Entre as Sonatas de piano, cumpre salientar a Sonata-fantasia em Dó Menor (K. 475 e K. 457) e a em Lá Menor (K. 310). Entre os Concertos de violino, indico o nº 3, em Sol, K. 216. Entre as Sonatas de piano e violino, as em Si Bemol, K. 378, em Mi Bemol, K. 380, e em Lá Maior, K. 526.

Os “divertimentos” se estendem durante muitos anos da produção de Mozart. Entre os mais importantes, é digno de menção o Divertimento para seis instrumentos, em Si Bemol, K. 287. E se eu tivesse de indicar uma única obra representativa, em alto grau do espírito, do coração e da técnica musical de Mozart, esta seria o Divertimento em Mi Bemol Maior, para trio de cordas, K. 563. É uma peça incomparável de princípio a fim, como beleza de ideias e desenvolvimento temático. Na música de câmara há poucas coisas que se lhe possam comparar.

No domínio da música religiosa, é forçosa a citação do Requiem (K. 626) e da Missa em Dó Menor (K. 427). Em outros setores, não podemos, de forma alguma, deixar de lado do extraordinário Adágio e Fuga em Dó Menor (K. 546) e a Fantasia para piano solo, em Dó Menor, K. 396.

Quem quiser saber mais a respeito de Mozart pode me consultar pelo Correio, pois o espaço do jornal não dá para mais nada… Até domingo, se Deus quiser.

(“Letras e Artes”, domingo, 21/07/1946.)

*

MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 17-21.

*

Wolfgang Amadeus Mozart (1756-91)

As Bodas de Fígaro (1786)

Mozart: Le nozze di Figaro, Wiener Philharmoniker, Claudio Abbado
1994, 81 faixas, 2h48min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Don Giovanni (1787)

Mozart: Don Giovanni, Philharmonia Orchestra, Carlo Maria Giulini
1961, 74 faixas, 2h42min
EMI Records Ltd.
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Così fan tutte (1790)

Mozart: Così fan tutte, Wiener Pilharmoniker, Karl Böhm
1990, 44 faixas, 2h34min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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A Flauta Mágica (1791)

Mozart: Die Zauberflöte (Recorded 1937), Berlin Pilharmonica Orchestra, Sir Thomas Beecham
1956, 36 faixas, 2h13min
Nimbus Records Limited
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Quinteto para cordas em Dó Maior, K. 515; e em Sol Menor, K. 516

Mozart: String Quintets Nº. 3 in C Major, K. 515 & Nº 4 in G Minor, K. 516, Jascha Heifetz
1963, 8 faixas, 58min
Sony Music Entertainment
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Quinteto para cordas em Ré Maior, K. 593; Quinteto dos pássaros (em Mi Bemol, K. 614)

Mozart: String Quintets, K. 593 & K. 614, Chilingirian Quartet, Yuko Inoue
2016, 10 faixas, 1h1min
CRD Records Ltd.
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Seis quartetos dedicados a Joseph Haydn

Mozart: String Quartets K. 387 & K. 421, Smithson String Quartet
1994, 8 faixas, 1h6min
EMI Records Ltd. / Virgin Classics
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Mozart: Six Quartets Dedicated to Haydn, Guarneri Quartet
2004, 24 faixas, 2h40min
BMG Music
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Sinfonias

Mozart: Symphonies, K. 504, K. 543, K. 550, K. 551, Mozart Akademie Amsterdam, Jaap Ter Linden
2007, 15 faixas, 2h8min
Brilliant Classics
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Mozart: Symphony nº 33 in B-Flat Major, K. 319, Bamberger Pilharmonic, Hans Swarowsky
2014, 21min
Essential Media Group LLC
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Mozart: Sinfonía nº 35 in D Major, K. 385, “Haffner-Sinfonie”, Orquesta Filarmonica de Alemania, Wilèm Oderich
1978, 3 faixas, 15min
Marfer, Discos Lollilop S. L.
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Concertos de piano

Mozart: Piano concertos nº 21, K. 467, e nº 12, K. 414, Paul Badura-Skoda, Prague Chamber Orchestra
2007, 6 faixas, 51min
Don Hunstein / Transart
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Mozart: Piano Concerto nº 14 in E-Flat Major, K. 449, Christoph Soldan, Silesian Chamber Soloists
2015, 3 faixas, 19min
K&K Verlagsanstalt
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Mozart: Concerto de piano en sol majeur, K. 453, Wilfried Bottcher
2011, 3 faixas, 28min
Astorg Classical
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Mozart: Piano Concerto nº 24 in C Minor, K. 491, & Rondo in A Minor, K. 511, Josef Krips, Arthur Rubinstein
1961, 4 faixas, 39min
Sony Music Entertainment
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Mozart: Piano Concerto nº 19 in F Major, K. 459, Piano Concerto nº 24 in C Minor, K. 491, Clara Haskil, Orchestre de Chambre de Lausanne & Victor Desarzens
2007, 6 faixas, 56min
Claves Records
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Mozart: Piano Concerto nº 23 in A Major, K. 488, Piano Concerto nº 24 in C Minor, K. 488, Philharmonia Orchestra, Walter Gieseking, Herbert von Karajan
2015, 6 faixas, 57min
RHI / THAI Records
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Mozart: Concerto for 2 Pianos, K. 365 / Sinfonia Concertante, K. 364, Håvard Gimse, Vebjørn Anvik, Iona Brown & Norwegian Chamber Orchestra
2009, 6 faixas, 53min
Chandos
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Sonatas de piano

Mozart: Piano Sonatas K. 457 & K. 331, Fantasias K. 475 & K. 397, Maria João Pires
1990, 8 faixas, 1h2min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Mozart: Piano Sonata nº 8 in A Minor, K. 310, Stefano Seghedoni
2018, 3 faixas, 15min
Idyllium
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Concertos de violino

Mozart: Violin Concertos, K. 216 & K. 218; Eine Kleine Nachtmusik; Serenade, K. 525, Bruno Walter
1955, 10 faixas, 1h6min
Sony Music Entertainment Inc.
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Sonatas de piano e violino

Mozart: Violin Sonatas, K. 301, K. 378, K. 380 and K. 526, Ani Kavafian, Jorge Federico Osorio
2006, 11 faixas, 1h13min
Artek
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Divertimentos

Mozart: Divertimento K. 287 & Serenade K. 525, Ensemble Wien
1996, 10 faixas, 59min
Koch International
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Mozart: Divertimento K. 563, Gidon Kremer, Kim Kashkashian, Yo-Yo Ma
1985, 6 faixas, 49min
Sony Music Entertainment
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Música religiosa

Mozart: Requiem in D Minor, K. 626, Carlo Maria Giulini
1990, 17 faixas, 1h6min
Sony Music Entertainment
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Mozart: Mass in C Minor, K. 427 (417a), Berliner Philharmoniker, Claudio Abbado
1991, 13 faixas, 52min
Sony BMG Music Entertainment
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Adágio e Fuga em Dó Menor (K. 546)

Mozart: String Quartets, K. 387, K. 465 & Adagio & Fugue in C Minor, K. 546, Quatuor Sine Nomine
1999, 9 faixas, 1h5min
Claves Records
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Fantasia para piano solo

Mozart: Fantasie in C Minor, K. 396; Piano Sonata nº 10 in C Major, K. 330; Piano Sonata nº 13 in B Flat, K. 333, Daniel Barenboim
1968, 7 faixas, 50min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Formação de discoteca, Murilo Mendes (III)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

III

Chegará para o amador o dia em que ele terá de abordar o catálogo das obras gravadas em disco, de Bach, Haendel, Mozart e Beethoven. De resto, uma discoteca contendo discos escolhidos, representativos do espírito e das tendências principais destes quatro grandes mestres da música, já será qualquer coisa de importante como instrumento de cultura.

Começando por Bach, uma dificuldade logo se impõe: sua obra-prima, o Cravo bem temperado, não poderá ser encontrada agora na interpretação original.

O único recurso será adquirir alguns prelúdios e algumas fugas em versão para piano, aqui e ali, até raiar o dia bendito em que a obra completa seja regravada. Aí então o amador feliz abrirá diariamente esses álbuns, que conterão não só o resultado máximo das experiências contrapontísticas de muitos séculos, mas também os mais altos motivos de contemplação e compreenderá que a música é uma chave do conhecimento do universo, como a religião ou a ciência. Seu espírito despirá os véus da contingência e ele penetrará o alto mistério que se esconde atrás do número e dos ritmos.

Insisto em que o amador procure de preferências as versões originais. A transladação ao piano das peças de Bach, escritas originalmente para cravo, é hoje universalmente aceita. De resto, Bach interessou-se muito pelo novo instrumento, que só chegaria a amadurecer, como se sabe, muito tempo depois, sob Beethoven. Mas há certas versões que não me parecem nem de longe convincentes. Por exemplo, a Passacaglia, a Tocata e Fuga em Ré Menor, a Chaconne da Partita nº 2, em piano, perdem muito do seu conteúdo, ganhando enfeites que Bach não previra. Há, entretanto, transcrições de Busoni aceitáveis. Mas, pelo amor de Deus, fujam do sr. Stokovski… Infelizmente, no momento, é difícil obter as Cantatas, que formam com o Cravo bem temperado e a Paixão segundo São Mateus o grande monumento da arte bachiana. Esperemos tempos mais propícios.

Muitos conhecem a famosa Chaccone somente na transcrição para piano. Tratem, pois, de adquirir a já citada Partita nº 2 em Ré Menor, para violino solo, da qual faz parte a Chaconne, e que é um monumento incomparável da literatura violinística. Comprem tudo que encontrarem em matéria de sonatas para violino, para cravo e violino, para cravo e flauta, suítes para orquestra, suítes para violoncelo etc. E, apesar de hoje bastante popularizados, não convém esquecer os Concertos de Brandenburgo; e, se não puderem comprar os seis, indicaria o nº 1 e o nº 5, entre os mais belos.

*

Diante de Haendel esbarramos com outra dificuldade, apontada em crônica anterior: suas obras de maior vulto, os Oratórios, especialmente O Messias e Judas Macabeu, não se prestam, et pour cause, a audições contínuas. Entretanto, certos trechos destacados constituem por si sós perfeitas obras musicais. Podem ser escolhidos ao acaso, pois nada é indiferente ou medíocre nessas obras monumentais.

Também os Concerti Grossi, modelos do gênero, podem ser escolhidos no escuro. Porque na organização e distribuição das massas sonoras, Haendel não só rivaliza, como talvez ultrapasse em certas soluções, o próprio Bach. A questão das enormes afinidades e das enormes de diferenças de temperamento e natureza entre Bach e Haendel será sempre um assunto apaixonante para todos os que se ocupam a sério de música. O célebre musicólogo Paul Bekker procurou as razões dessa diferença no que ele chama de caráter fundamental da sensação sonora: o homem pode sentir o som vocalmente, e pode senti-lo instrumentalmente. Nos dias de hoje a predominância da sensação instrumental determina de nossa parte uma diminuição, ou pelo menos parcialidade, da nossa faculdade de percepção sonora. Segundo ainda Bekker, Haendel é o músico da sensação vocal, e Bach, o da sensação instrumental.

Além dos já citados Concerti Grossi, não esqueçamos os concertos para órgão e orquestra (particularmente o nº 11 em Sol Menor, e o nº 13 em Fá Maior), as sonatas para cravo, para cravo e oboé, para cravo e viola de Gamba etc.

*

Não podemos, antes de chegar a Mozart e Beethoven, deixar de lado Gluck. Apesar dos terríveis epigramas que lhe dirigiu o nosso caro Debussy na sua famosa Lettre ouverte au chevalier Gluck, que alude às “pretendidas relações entre a música de Gluck e a arte grega”, e declara Rameau muito mais grego do que ele — apesar das reações desfavoráveis que a pompa de seu dramatismo provoca em muitos — Gluck deve ser contado entre os grandes. Na verdade, não lhe perdoo ter escrito textualmente que “a música deve ser reduzida a sua verdadeira função, a de secundar a poesia” por onde logo se vê que ele se opõe nitidamente a Mozart), mas se coloco na eletrola um disco de Orfeu, ou de Efigênia em Aulida, a prevenção desfaz-se como por encanto; justifica-se o entusiasmo de Rousseau quando escreveu: “Já que se pode ter um grande prazer durante duas horas, admito que a vida preste para alguma coisa”.

Corre mundo uma bem feita síntese de Orfeu, na persuasiva interpretação de Alice Raveau no papel principal; aconselho-a aos amadores.

Da próxima vez falaremos da importante escolha de discos de Mozart e Beethoven, o que levanta, como se verá, certos problemas de opção.

(“Letras e Artes”, domingo, 30/junho/1946.)

*

MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 12-16.

*

Johann Sebastian Bach (1685-1750)

Concertos de Brandenburgo (1721)

Bach: Brandenburg Concertos, Yehudi Menuhin, Bath Festival Orchestra
1989, 19 faixas, 1h52min
EMI Records Ltd.
Spotify – link

Bach: Brandenburg Concertos, Szymon Goldberg, Netherlands Chamber Orchestra
1993, 1h46min
Philips Classics
YouTube – link

O Cravo bem Temperado (1722-42)

Bach: Das wohltemperierte Klavier, BWV 846-893, Pieter-Jan Belder
2009, 96 faixas, 4h28min
Brilliant Classics
Spotify – link

Bach: O Cravo bem Temperado, João Carlos Martins, Bachiana Chamber
TS Tecnologia
I, Vol. 1 (2007, 12 faixas, 1h8min) – Spotify – link
I, Vol. 2 (2007, 12 faixas, 1h7min) – Spotify – link
II, Vol. 1 (2008, 13 faixas, 1h16min) – Spotify – link
II, Vol. 2 (2008, 11 faixas, 1h13min) – Spotify – link

J. S. Bach: The Well-Tempered Clavier (Books I & II), Sviatoslav Richter
2014, 96 faixas, 4h31min
Musical Concepts
YouTube – link

A Paixão Segundo São Mateus (1727)

Bach: St. Matthew Passion, Leonard Bernstein, New York Philharmonic, Collegiate Chorale
1963, 67 faixas, 2h33min
Sony Music Entertainment Inc.
Spotify – link

J. S. Bach: Matthäus-Passion, Otto Klemperer, Philharmonia Orchestra
1962, 78 faixas, 3h43min
EMI Records Ltd.
YouTube – link

Cantatas

Bach: Cantatas, Enghave Barok
Vol. 1 (2016, 17 faixas, 57min) – Spotify – link
Vol. 2 (2016, 20 faixas, 1h3min) – Spotify – link
Vol. 3 (2016, 17 faixas, 51min) – Spotify – link
Enghave Barok

J. S. Bach: 6 Favourite Cantatas (CD 1), BWV 147, 80, 140, The Bach Ensemble, Joshua Rifkin
1997, 1h11min
L’Oiseau-Lyre
YouTube – link

Sonatas para violino solo

Bach: The Sonatas and Partitas for Violin Solo, Gidon Kremer
2005, 32 faixas, 2h11min
ECM Records GmbH, Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
Spotify – link

J. S. Bach: Sonatas & Partitas for Solo Violin, BWV 1001-1006, Kristóf Baráti
2013, 31 faixas, 1h53min
Brilliant Classics
YouTube – link

Sonatas para cravo e violino

Bach: Sonatas for Violin and Harpsichord, BWV 1014-1016, Katha Zinn, Illya Filshtinskiy
2018, 12 faixas, 47 min
aTonalHits
Spotify – link

Bach: 6 Suonate a Violino Solo e Cembalo Certato, Henryk Szeryng, Helmut Walcha
1970, 1h37min
Decca Music Group Limited
YouTube – link

Sonatas para cravo e flauta

J. S. Bach: Sonatas for Flute and Harpsichord, Stefanie Troffaes, Julien Wolfs
2016, 20 faixas, 1h17min
Paraty
Spotify – link

Bach: Sonatas for Flute and Harpsichord, Alexander Korneyev, Alexander Bakhchiev
2013, 25 faixas, 1h35min
JSC Firma Melodiya
YouTube – link

Suítes para orquestra

J. S. Bach: Orchestral Suites, Academy of Ancient Music
2014, 24 faixas, 1h33min
Academy of Ancient Music
Spotify – link

Bach: Orchestral Suites 1-4, Robert Haydon Clark, Consort of London
1992, 24 faixas, 1h18min
Collins Classics / Phoenix International, UK
YouTube – link

Suítes para violoncelo

Bach: Unaccompanied Cello Suites, Yo-Yo Ma
1983, 36 faixas, 2h10min
Sony Music Entertainment
Spotify – link

J. S. Bach: Cello Suites, Pablo Casals
2000, 2h10min
HNH International Ltd. / Naxos Historical
YouTube – link

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Georg Friedrich Händel (1685-1759)

Concerti Grossi, Op. 6 (1739)

Georg Frideric Handel, Concerti Grossi, Op. 6, Martin Gester
2008, 60 faixas, 2h43min
BIS
Spotify – link

Handel: 12 Concerti Grossi, Op. 6, Iona Brown, Academy of St. Martin in the Fields
1979, 62 faixas, 2h48min
Philips / Universal Classics & Jazz
YouTube – link

O Messias (1741)

Handel: Messiah, HWV 56, Bach Collegium Japan, Masaaki Suzuki
1997, 55 faixas, 2h21min
BIS
Spotify – link

Handel’s Messiah: A Soulful Celebration, vários artistas
1992, 16 faixas, 1h16min
Reprise Records
Spotify – link

Handel: Messiah, The Monteverdi Choir, English Baroque Soloists, John Eliot Gardiner
1983, 51 faixas, 2h17min
Universal International Music B.V.
YouTube – link

Judas Macabeu (1746)

Handel, G. F.: Judas Maccabäus (Sung in German) [Oratorio], Helmut Koch, Berlin Rundfunk Symphonie Orchester, Berlin Radio Solistenvereinigung
1968, 65 faixas, 2h36min
VEB Deutsche Schallplatten Berlin
Spotify – link

Handel: Judas Maccabeus, English Chamber Orchestra, Heather Harper, Johannes Somary, John Shirley-Quirk, Wandsworth School Boys Choir
2014, 1h19min
eOne Music / Koch Entertainment
YouTube – link

Concertos para órgão e orquestra

Handel: The Organ Concertos, Simon Preston, The English Concert, Trevor Pinnock
1984, 60 faixas, 3h17min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
Spotify – link
YouTube (CD1, 1h12min) – link

Sonatas para cravo; para cravo e viola de gamba

G. F. Handel: The Sonatas for recorder, violin, viola da gamba and harpsichord, The Cambridge Musick
2013, 30 faixas, 2h1min
Globe
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G. F. Handel: Sonate für Viola da Gamba und Cembalo Concertato, Vladimir Gavryushov, Dmitry Zubov
11 de fevereiro de 2015, Mariinsky Theatre (São Petersburgo, Rússia)
YouTube – link

Sonatas para cravo e oboé

Händel: Recorder & Oboe Sonatas, Ensemble Amarillis
2001, 33 faixas, 1h5min
Ambroisie
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Handel: Complete Wind Sonatas (CD2), Academy of St. Martin in the Fields, William Bennett, Neil Black, Michala Petri
1995, 1h18min
Universal International Music B.V.
YouTube – link

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Christoph Willibald Gluck (1714-87)

Orfeu e Eurídice (1762)

Gluck: Orfeo ed Euridice, Münchener Bach-Chor, Münchener Bach-Orchester, Karl Richter
1968, 45 faixas, 1h34min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
Spotify – link

Gluck: Orfeo ed Euridice, Wiener Philharmoniker, Chor der Wiener Staatsoper, Herbert von Karajan
5 de agosto de 1959 (Salzburgo, Áustria), 1h25min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Orfeu e Eurídice — interpretação de Alice Raveau no papel principal

Gluck: Orphée – Quel nouveau ciel pare ces lieux! – 1934 Version, Alice Raveau, Henri Tomasi, Orchestre Henri Tomasi
L’art français du chant, vol. 3
2015, 13 faixas, 1h5min
Forlane / DOM
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Gluck: Orphée – J’ai perdu mon Eurydice, Grand Orchestre Symphonique, Henri Tomasi
1934, 7min
Pathé
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Efigênia em Aulida (1774)

Gluck: Iphigénie en Aulide, José van Dam, John Eliot Gardiner, Orchestre de l’Opéra de Lyon
1988, 69 faixas, 2h13min
Erato Classics S.N.C.
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Gluck: Iphigenie en Aulis, Müncher Rundfunkorchester, Chor des Bayerischen Rundfunks, Kurt Eicchorn
1972, 1h42min
Ariola-Eurodisc / MPC Schallplatten GmbH
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Formação de discoteca, Murilo Mendes (II)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

II

A formação de uma discoteca levanta, conforme assinalei na crônica anterior, problemas de escolha e opção. É preciso distinguir o amador esclarecido de música do colecionador de discos. Lembro-me de ter sido convidado, alguns anos atrás, a visitar uma discoteca particular famosa. No fim de duas horas eu estava exausto, com raiva do colecionador, dos fabricantes de discos e quase até da música. O homenzinho, implacável, possuidor de nada menos de quatro mil discos, fazia questão de mostrar todas as maravilhas da solução, em que havia de tudo, um sortimento completo, inclusive dezenas dos mais banais tangos argentinos; a música de salão recebia as mesmas homenagens devidas a Bach, Mozart e Beethoven. Era alucinante. Quase foram necessários os socorros da Assistência1.

Há certas peças musicais — e das maiores — cuja audição perde muito, a meu ver, dentro de um pequeno aposento para uma, duas ou três pessoas. A Paixão segundo São Mateus, de Bach; a Nona Sinfonia, de Beethoven, por exemplo, são obras de expressão coletivista e monumental, obras destinadas e produzir contágio de ideias e sentimentos elevados entre os homens; requerem a atmosfera de uma igreja, de um auditório, de um teatro. Entretanto, o amador que possui uma pequena discoteca poderá comprar duas ou três peças destacadas de cada uma, se bem que eu pessoalmente seja, em princípio, contra a mutilação das obras musicais. Mas, na verdade, dentro da agitada vida moderna, como arranjar tempo para ouvir sempre a Paixão segundo São Mateus, cuja execução dura três horas e meia?…

*

O problema da hierarquia, de uma prioridade de valores e de preferências, coloca-se inevitavelmente diante de toda a pessoa que inicia a formação de uma discoteca com duzentos ou trezentos discos. O critério mais certo consiste em começar pelos músicos essenciais, fundamentais: Palestrina — Bach — Haendel — Mozart — Beethoven — aos quais vem se juntar, entre os modernos, Debussy.

Por exemplo: Mendelssohn, Liszt, Tchaikovsky, são bons músicos, mas trazê-los para casa, e deixar de lado Bach e os outros que apontei, será um abominável “sacrilégio”.

O critério de universalidade choca-se com o de ecletismo. Confesso que posso passar perfeitamente sem Mendelssohn, Liszt, Tchaikovsky e tantos outros; mas sem o “pão cotidiano” de Bach ou Mozart a vida torna-se quase irrespirável… Agora, todo o indivíduo que pretende fazer sua instrução e educação musical terá que conhecer aqueles músicos, secundários muitos, outros mesmo inferiores. Mas isto já é outra história.

*

Da outra vez citamos algumas peças importantes da música clássica. Desta vez quero chamar a atenção dos amadores de boa vontade para a obra de dois músicos da época clássica inglesa: William Byrd e Henry Purcell. A Inglaterra, que é tão fértil em grandes poetas, não o é em grandes músicos. Mas os dois nomes citados asseguram-lhe, por si sós, um posto de honra entre os países que contribuem para a música mundial.

De vez em quando aparecem por aqui discos com trechos de missas, com “chaconnes”, pavanas e “gagliardas” de William Byrd. Comprem, srs. amadores, comprem tudo que encontrarem! Serão transportados de novo a esse lugar de inocência que tanto amam as crianças, os santos e os poetas; a esse “vert paradis des amours enfantines”, “l’innocent paradis, plein de plaisirs furtifs”, que Baudelaire celebrou num poema para sempre famoso, e que a música nos reconstitui melhor que em nenhuma outra arte, dando-nos uma antecipação da Promessa.

Na minha opinião, uma das coisas mais belas que existem em música é Dido e Enéas de Purcell. Esse espécie de oratório ou ópera, como quiserem, é uma das mais perfeitas réussites do gênero. Autolirismo e força de expressão dramática, riqueza de conteúdo, representação da paixão amorosa, um senso exato da economia de proporções da ópera, que já anuncia Mozart — com o qual possui Purcell mais de um ponto de contato — tudo isso faz de Dido e Enéas uma peça da mais alta importância, que não deve faltar na discoteca de um amador esclarecido — já que, felizmente, para o nosso prazer, ela está gravada.

Ainda de Purcell poderá ser encontrada, com relativa facilidade, a célebre Golden Sonata, para dois violinos e cravo. E por falar em cravo, convém tomar nota da obra de dois cravistas franceses, principalmente Couperin e Rameau. A influência desses dois grandes homens sobre músicos consideráveis está hoje definitivamente estabelecida, sobretudo a influência de Couperin sobre Bach e a de Rameau sobre Debussy — o que não é falar pouco…

Voltarei ao assunto em crônicas posteriores.

(“Letras e Artes”, domingo, 23/junho/1946.)

 

Nota:
1 Entenda-se: ambulância. (N. do E.)

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MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 8-11.

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William Byrd (1539/40-1623)

Byrd: Harpsichord Works, Ursula Dütschler
1990, 13 faixas, 1h9min
Claves Records
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William Byrd: Harpsichord Music, Colin Tilney
1974, 10 faixas, 51min
EMI Electrola
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Henry Purcell (1659-1695), Dido e Enéas
Dido and Aeneas (c. 1683-88)

Purcell: Dido and Aeneas, Geraint Jones, Nahum Tate, Kirsten Flagstad, Warwick Braithwaites
1949, 40 faixas, 1h4min
EMI Records Ltd.
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Purcell: Dido and Aeneas, Choir and Orchestra of the Age of Enlightenment, Steven Devine, Elizabeth Kenny
2009, 31 faixas, 1h9min
Chandos
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Henry Purcell, Golden Sonata
Sonata Nº 9 in F major, Z. 810 (c. 1680)

Purcell: 10 Sonatas in Four Parts, Catherine Mackintosh, Monica Hugget, Christophe Coin, Christopher Hogwood
1982, 10 faixas, 1h2min
Decca Music Group Limited
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Henry Purcell: Sonata Nº 9 in F major, Z. 810, The King’s Consort
27 a 29 de novembro de 2013, The Menuhin Hall (Surrey, Inglaterra)
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François Couperin (1668-1733)

Couperin: Ordres pour Clavecin, Violaine Cochard
2005, 50 faixas, 2h3min
Sound Arts AG, Ambroisie
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François Couperin: Pièces de Clavecin, Rafael Puyana, Christopher Hogwood
1969/70, 18 faixas, 1h7min
Philips Classics Productions
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Jean-Philippe Rameau (1683-1764)

Rameau: Pièces de clavecin, Viviane Chassot
2011, 18 faixas, 1h6min
Genuin
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Rameau: Les Indes Galantes (Transcriptions originales pour clavecin), Kenneth Gilbert
1979, 43min
Harmonia Mundi
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Johann Sebastian Bach (1685-1750), A Paixão Segundo São Mateus
Matthäus-Passion (1727)

Bach: Matthäus-Passion, Concentus Musicus Wien, Nikolaus Harnoncourt
2001, 68 faixas, 2h42min
Teldec Classics International
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Bach: St. John Passion, John Eliot Gardiner & The English Baroque Soloists
2016, 2h54min
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Georg Friedrich Händel (1685-1759)

George Frideric Handel: Water Music, The English Concert, Trevor Pinnock
1983, 19 faixas, 54min
Deutsche Grammophon GmbH, Berlin
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Ludwig van Beethoven (1770-1827), Nona Sinfonia
Symphony No. 9 in D Minor, Op. 125 (1824)

Beethoven: Symphony No. 9, ‘Choral’, Wilhelm Furtwängler
2006, 11 faixas, 1h14min
Naxos
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Claude Debussy (1862-1918)

Debussy: Clair de Lune, Suite Bergamasque, Philippe Entremont
1961, 19 faixas, 1h12min
Sony Music Entertainment Inc.
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Debussy: Suite Bergamasque, Seong-Jin Cho
15 de abril de 2016, Kumho Art Hall (Seul, Coreia do Sul)
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O cantor que conduz um carro feito de sons

Sílvio Diogo

‘Alta velocidade parada’ (2018), álbum de estreia de Danilo Gonzaga Moura / Arte gráfica da capa: Rafael Cintra; fotografia: Diógenes S. Miranda

A voz de Danilo Gonzaga Moura parece ser o principal dos instrumentos em seu disco de estreia, Alta velocidade parada. A ambiência, o tom, os movimentos que ressoam de canção a canção encontram um ponto de convergência no timbre do artista. A dança da voz desenha um percurso marcado por diferentes sonoridades e influências estilísticas, tendo por eixo o que se costuma chamar de música popular brasileira, em diálogo com ritmos dolentes e sincopados da canção em língua espanhola, sobretudo latino-americana.

O álbum, produzido pelo próprio músico juntamente com a cantora argentina Paola Albano, é fruto de um especial diálogo com a poesia, seja nas composições de Danilo em parceria com o poeta e letrista Paulo Nunes, seja nos poemas de Cassiano Ricardo musicados por Joca Freire, ou ainda nos versos do espanhol Vicente Cerveras Salinas recriados na melodia de Wagner Dias e Rodrigo Rosa.

Esse diálogo com a poesia não é uma casualidade; pelo contrário, revela uma unidade conceitual que percorre o disco de ponta a ponta, tecendo gradualmente uma narrativa musical fértil em significados e caminhos. Em tempos de audição fragmentada, aleatória, Danilo Gonzaga Moura não se furta ao desafio de conceber um álbum, no melhor sentido da palavra.

Poderíamos dizer que o argumento do disco, por analogia com o roteiro cinematográfico, são as relações entre o abandono e a proximidade, entre a solidão e o estar em companhia das outras pessoas, entre a infância e a idade adulta, especialmente nos espaços da grande cidade.

Em “Alta velocidade parada”, tema que abre o disco e norteia a sua concepção, com arranjo de Lisandro Massa, os versos de Paulo Nunes compõem a imagem do automóvel (feito para deslocar-se velozmente, mas forçado ao imobilismo, ao congestionamento) como alegoria de um desacerto existencial, um imaginário carrossel que gira em torno de si, movendo-se e permanecendo estático ao mesmo tempo.

O cantor que nos conduz nesse carro constituído de sons está à procura de sentidos, de direções; abre a sua bússola e o seu mapa e convida-nos a viajar juntos. O ambiente sonoro do disco, uma trilha melódica e territorial, descortina-se no encontro criativo com músicos, instrumentistas e arranjadores de variadas tendências e geografias.

O percussionista Andre Rass teve importante participação na construção das ideias rítmicas do álbum, juntamente com o contrabaixista Pedro Macedo. Com o acordeom, Thadeu Romano criou o arranjo da valsa-circense “Na lona”, em que se brinca na corda bamba entre a alegria e os leões, entre o sorriso e o globo da morte. O violonista e compositor portenho Roberto Calvo compôs um arranjo de tango para “Queixa Antiga”, música de Joca Freire sobre poema de Cassiano Ricardo; numa atmosfera de salão, Danilo Gonzaga Moura solta a voz em versos potentes como “minhas longas raízes ficaram/ no chão duro de onde fui arrancado”.

A levada das congas e das maracas, na linguagem da música caribenha, guia a canção “El segundo viaje”, poema de Vicente Cerveras Salinas musicado por Wagner Dias e Rodrigo Rosa. “Chuva fina”, de Sérgio Sampaio, é interpretada em forma de choro-canção, com arranjo de Gabriel Deodato no violão de sete cordas.

O disco também conta com a participação do pianista mineiro Rafa Castro (em “Competição”, “Mais perto” e “Sem tempo”) e da pianista argentina Silvana Albano, que trabalhou no arranjo da música “Arquivado” (composição de Saulo Alves e Paulo Nunes) e como instrumentista em “Manhãs eternas”.

A voz de Danilo Gonzaga Moura ganha força precisamente no encontro com outras vozes. Em “Esencia”, composição dele em parceria com Paola Albano, o timbre delicado passeia pelas interrogações em língua espanhola, em conversa melódica com os sopros da gaita de Victor Lopes: “Donde quedó lo que éramos/ Antes de ser nosotros?”.

“Última canção”, música de Danilo e letra de Paulo Nunes, fecha lindamente o disco, na singeleza da voz e do violão: um desenlace tanto do ponto de vista estético quanto conceitual. Chama a atenção a forma como o compositor tece as ligações e as pausas dos versos em espiral, não deixando, em momento algum, a canção cair.

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Alta velocidade parada, Danilo Gonzaga Moura
2018, 12 faixas, 41min
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Para comprar o CD e obter mais informações sobre o disco e o artista, acesse a página de Danilo Gonzaga Moura

“O concerto”, María Zambrano

María Zambrano

María Zambrano por Sciammarella — El País, 25/jan./2010

Para o mestre Andrés Segovia

Ouvia-se. Acaso haveria de se ouvir o violão se o seu ressoar não entreabrisse desde o primeiro instante o modo justo de escutar? Eis a sua primeira virtude, indiscernível por enquanto. Os que se preocupam com as pedagogias talvez tenham se dado conta de que a Música é que ensina sem palavras o justo modo de escutar. E de que, quando se trata da palavra sozinha, as coisas se passam de maneira semelhante: a música, que pode ser uma forma de silêncio, é que sustenta a palavra no seu meio e no seu modo justo, nem tão alta nem tão baixa — sempre um pouco baixa, de preferência. Porque a música é, desde o início, aquilo que se ouve, aquilo que se há de ouvir, e, sem ela, a palavra sozinha decai tornando-se mais densa, em vias de se transformar em pedra, ou ascende volatilizando-se, frustrando as expectativas. Graças à música, a palavra não frustra; desprovida dela, mesmo sendo palavra de verdade — e, neste caso, ainda mais —, ela se desdiz. A música é a garantia da não traição, não existem nela “as boas intenções”, e uma única falha na voz que se expressa revela a falácia ou denuncia o descumprimento da verdade. A música cumpre, cumpre-se; e, escutando-a, nós nos cumprimos. Aquele que leva consigo a música, o que é, quem é? Um ser remoto, uma pura atualidade do sempre. E resulta impensável que alguma vez se vá, que alguma vez não tenha estado. Voltará.

Voltará sempre quem faz a música deste instante. Voltará essa música que mais se aproxima da origem, do princípio, quando simultaneamente revela o instante de agora. Dura, toda ela, um instante. Dura um instante toda a música. Um instante de eternidade, tal qual o morrer, o nascer, o amar.

Em especial, quando vem do violão a música; mas o que seria na verdade esse pulsar solitário, essa onda do ser e da vida? Não será, porventura, o instrumento musical em sentido estrito, inteiro e só, único?

Instrumento único da música toda. É possível que uma nota só lhe bastasse. Inconfundível, unia os contrários: o ser e o não-ser do próprio sentimento. Era lamento e não era. Celebração sem rastro de triunfo. A música une os contrários, ou está tomando fôlego antes que apareçam? Ou a sua execução é um puro ato que nos devolve num instante à origem do tempo, justo agora, quando tantos caminhos foram percorridos por ele, não só agora como antes, depois de tudo, afinal? E que, dessa forma, nos dá a lei do íntegro sentir, livrando-nos da nostalgia que os simplificadores do viver acreditam ser o dom da música e, sobretudo, a sua voluptuosidade. Pode haver dor, e com maior intensidade no violão, que talvez seja entre todos os instrumentos o escolhido pela dor. A dor, porém, não pede para ser estabelecida, condensada; a dor pede para surgir enfim sem ser notada, depois de germinar, de haver germinado como uma inumerável colônia de formigas. A dor que no violão se esquiva do sofrimento, sob o Anjo que ajusta o sentimento minuciosamente e o orienta passo a passo rumo àquilo que não se acaba, no alto. Guarda a música o segredo da exatidão do sentir, as cifras do cálculo infinitesimal do padecer. E isto alcança, ao menos entre os instrumentos ocidentais, o seu máximo cumprimento no violão, tão entranhável que ecoa lá de dentro, na gruta do coração do mundo. E por isso, os que a resvalam por andar às pressas acham que ela é carpideira, e os que a aproveitam tratam-na como lancinante. E ela lhes diz: “Deixai-me sozinha”, mas eles não entendem. Pois é oportuno considerar também que ela se ofereça sozinha a alguém que, sem pressa, prossiga durante toda a sua vida quase sem a tocar, roçando-a ligeiramente, desfiando o seu segredo de acordo com o número, esse que se esconde mais quanto mais se revela. Clareia, então, a noite do padecer; o enxame do sofrimento se unifica. O som é um só. O Anjo arrancou os espinhos e ele próprio se faz sentir enquanto se apaga.

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Tradução: Sílvio Diogo

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María Zambrano. Claros del bosque (edición de Mercedes Gómez Blesa). 3.ª ed. Madrid: Cátedra, Colección Letras Hispánicas, 2017, pp. 209-11.

Formação de discoteca, Murilo Mendes (I)

Murilo Mendes

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

I

Já que o disco se tornou a mais prática e rápida forma de divulgação da música, principalmente numa cidade como o Rio de Janeiro, onde os bons concertos são raros, a formação de uma discoteca não é assunto que se possa desdenhar numa seção de jornal dedicada à música.

Não me refiro a discotecas de instituições; no momento só quero mencionar as possibilidades de discoteca para amadores.

É claro que não se pode, nem se deve, obedecer a um critério fixo. Aqui só poderão falar as preferências pessoais, se bem que se pretenda obter uma síntese de bom gosto e de interesse geral.

Tomemos o caso de um amador que não disponha de grandes recursos financeiros, mas que deseja formar uma discoteca pequena e bem selecionada. Admitamos que ele cultive a música clássica, romântica e moderna. Seria necessária uma orientação, principalmente se reside no interior e não tem muita facilidade de informação com os entendidos.

Se ele dispõe de uma margem financeira para adquirir, digamos, trezentos discos, precisa antes pensar e seguir um certo plano, a fim de que sua discoteca se torne um instrumento harmonioso de cultura, e não um simples passatempo para auxiliar a digestão.

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Como é natural, a preocupação com os clássicos impõe-se logo de saída. Nos últimos anos antes da guerra intensificou-se na Europa e nos Estados Unidos a produção de discos de música clássica. Não aludimos somente à música do século XVIII, que marca o apogeu do classicismo. Não queremos nos apegar ao conceito muito espalhado de que Bach é o “pai da música”. Poderíamos dizer o mesmo de Palestrina, de Henrique Schütz, de Victoria, ou dos monges que fixaram as formas do gregoriano. Esta parte da música a que podemos chamar, por comodidade, de “música antiga”, deve figurar, necessariamente em síntese, na formação de uma discoteca, mesmo pequena. Antigos cantos religiosos, ou profanos, cantos populares, cantos de trabalhadores, de peregrinos, de remadores, estão hoje fixados em disco. Por enquanto quero me referir somente a discos que se possam encontrar no mercado ou mandar vir do estrangeiro. Porque há discos da maior importância cultural, mas infelizmente esgotados.

Duas coleções da Colúmbia, intituladas 2000 Anos de Música e a História da Música pelos ouvidos e pelos olhos oferecem um panorama rápido, mas de grande interesse; trata-se de discos representativos, cuidadosamente escolhidos, com ótimos conjuntos; possuindo o defeito de em geral apresentar só trechos de cada composição. Através destes discos, trava-se conhecimento com a antiga música grega, a antiga música judia, o gregoriano, a polifonia, as escola flamenga, italiana e alemã da Renascença. Na Coleção 2000 Anos de Música é digno de nota um disco de canto de peregrinos a Santiago de Compostela (século XII).

Do século XV é indispensável o conhecimento da maravilhosa “Missa da Coroação”, de Guillaume de Machaut; e do século XVI, a não menos maravilhosa Missa do Papa Marcelo, de Palestrina, da qual estão gravados pelo menos os trechos mais significativos.

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A iniciação ao canto gregoriano pode ser feita através dos discos gravados na Abadia de Solesmes. Ainda a versão mais autorizada, se bem que, na opinião dos especialistas, precise de certos expurgos. Poderão ser encontrados dois álbuns com doze discos; mas o amador que não possuir algum espírito místico dificilmente os aceitará, pois as combinações do gregoriano são as mais simples e pobres que se podem imaginar, sendo os sons sempre iguais como duração e como intensidade. Quem pretender se divertir ou “passar o tempo” com a audição do gregoriano está frito, pois nele o tempo não passa. Estou certo de que alguns incautos me agradecerão o aviso… Mas os de boa vontade não se arrependerão, já que o gregoriano representa, na opinião de musicólogos categorizados, a solução mais perfeita, até hoje encontrada pela música europeia, do famoso problema da união da palavra e do som.

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Quatro grandes músicos, quatro grandes criadores que nasceram antes de Bach, se impõem à nossa atenção, não podendo deixar de ser representados numa discoteca, por menos que seja, os italianos Palestina e Monteverdi, o alemão Henrique Schütz e o espanhol Victoria.

Com relativa facilidade poderão ser encontrados discos gravando hinos religiosos e madrigais profanos de Palestrina. De Monteverdi, além de outros, são dignos de menção os discos do célebre madrigal Lacrima d’amante al sepolcro dell’amata, composto em memória de sua amiga, a cantora Caterinuccia Martinelli — um dos mais prodigiosos cantos de amor e morte que a história da música registra. Quem não ouviu este madrigal não é musicalmente batizado… De Victoria e não Vittoria, como aparece por aí, com o nome italianizado, aconselho a audição, entre outras peças, dos Responsórios da Semana Santa.

Quanto a Henrique Schütz, criador da ópera alemã, fixador, com Carissimi, da forma do oratório e precursor das Paixões de João Sebastião Bach, podemos mencionar alguns discos de sua Missa Alemã e de motetes religiosos.

Como o espaço não dá mais, prometo voltar ao assunto em outras crônicas.

(“Letras e Artes”, domingo, 16/junho/1946.)

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MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. 3-7.

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Canto gregoriano: discos gravados na Abadia de Solesmes

Solesmes 1930: Traditional, Chœur des Moines de l’Abbaye Saint-Pierre de Solesmes, Dom Joseph Gajard
2007, 27 faixas, 1h7min
Abbaye de Solesmes – Plaza Mayor Company, Ltd.
Spotify – link

Gregorian Chant: Monastic Choir of the Abbey of St. Pierre de Solesmes, Dom Joseph Gajard
Década de 1960, 45min
RCA Victor
YouTube – link

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Guillaume de Machaut (c. 1300-1377), “Missa da Coroação”
Messe de Notre Dame (ou de Nostre Dame) – composta entre 1360 e 1365

Machaut: Messe de Nostre Dame
Ensemble Gilles Binchois, Dominique Vellard
1999, 17 faixas, 56m
Spotify – link
YouTube – link

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Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), Missa do Papa Marcelo
Missa Papae Marcelli (1567)

Palestrina: Missa Papae Marcelli, Regensburger Domspatzen, Georg Ratzinger
1986, 16 faixas, 59min
BMG Entertainment
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Palestrina: Missa Papae Marcelli, The Tallis Scholars, Peter Phillips
The Palestrina 400 Collection (4 CDs)
1994, 36min
Gimell
YouTube – link

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Tomás Luis de Victoria (1548-1611), Responsórios da Semana Santa
Tenebrae Responsories (1585)

Victoria: Tenebrae Responsories, Lumen Valo
1997, 18 faixas, 53min
Alba
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Claudio Monteverdi (1567-1643): discos do madrigal Lagrime d’amante al sepolcro dell’amata
Il sesto libro de madrigali (1614)

Monteverdi: Il sesto libro de madrigali
Concerto Italiano, Rinaldo Alessandrini
2006, 18 faixas, 1h3min
naïve classic
Spotify – link
YouTube – link

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Heinrich Schütz (1585-1672), discos de sua Missa Alemã e de motetes religiosos

Schütz: Geistliche Chormusik, Op. 11, (1648) Bach Collegium Japan (Orchestra), Masaaki Suzuki (Conductor)
1997, 30 faixas, 2h1min
BIS
Spotify – link

Heinrich Schütz: Zwölf Geistlichen Gesänge (1657), Hans-Christoph Rademann
2012, 12 faixas, 1h
Carus
Spotify – link

Heinrich Schütz: Cantiones sacrae quatuor vocum, Cappella Augustana, Matteo Messori
2012, Brilliant Classics
YouTube – link
Spotify – link

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Quanto às coleções mencionadas por Murilo Mendes — 2000 Anos de Música e História da Música pelos ouvidos e pelos olhos —, informações podem ser encontradas nos endereços abaixo:

2,000 years of music. A concise history of the developmemt of music from the earliest times through the 18th century, compiled and arranged by Dr. Curt Sachs with various performers (c. 1930)
Medieval Music & Arts Foundation – link

2000 años de música. El canto gregoriano, Las primeras manifestaciones de la polifonía [recopilación], Dr. Curt Sachs (1948)
Biblioteca Nacional de España – link

2,000 years of music [sound recording] / compiled by and released in memory of Curt Sachs (1962)
National Library of Australia – link

The Columbia history of music by ear and eye, by Percy Scholes (1930)
National Library of Australia – link

The Columbia history of music by ear and eye. Volume one, Period 1
Bibliotèque nationale de France – link

Columbia History of Music by Ear and Eye, Volume I
Medieval Music & Arts Foundation – link

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Nota: Ao longo do mês de agosto, aos domingos, serão divulgados neste blog os quatro primeiros textos que compõem o livro Formação de discoteca. A publicação foi autorizada pela Agência Riff, que cuida dos direitos autorais de Murilo Mendes em acordo com os herdeiros do autor. Agradeço a Lucia Riff pela gentileza.

É importante dizer que o objetivo não foi o de resgatar as gravações em disco que Murilo ouviu até os anos de 1946/47, período em que publicou as crônicas musicais no suplemento “Letras e Artes”, do jornal carioca A Manhã— mas sim, a partir das indicações feitas pelo poeta, buscar gravações hoje disponíveis na web, tendo como foco o ouvinte contemporâneo.

Formação de discoteca: Introdução

Murilo Marcondes de Moura

Texto de introdução ao livro Formação de discoteca e outros artigos sobre música, de Murilo Mendes. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993.

Capa: Marina Mayumi Watanabe / Ilustração: Olivier Toni (1926-2017)

O que o leitor tem em mãos é a reunião de 29 escritos de Murilo Mendes sobre música, publicados entre 1946 e 1947 no prestigioso suplemento “Letras e Artes” do jornal A Manhã (RJ). Além de colaborador, o poeta era também o responsável pela seção musical do periódico, o que pode causar espanto, pois até aquela data ele jamais havia escrito sistematicamente sobre o assunto. O fato é que Murilo Mendes já era bastante respeitado pelo gosto e pelos conhecimentos musicais que cultivara, assim como pelo combate veemente, bem de acordo com sua personalidade, à rotina e à pobreza da vida musical da época: uma de suas “intervenções” mais saborosas foi a de ter aberto o guarda-chuva em pleno teatro municipal do Rio de Janeiro, protestanto contra o péssimo nível da programação e da execução das obras. Outro exemplo, este certamente mais conhecido, foi o seu autêntico culto a Mozart (que ele “descobrira” em 1935), de maneira que a simples menção a este compositor era suficiente para evocar o nome do poeta, fosse em um artigo despretensioso de jornal, fosse em um capítulo de história da música, como a de Guilherme de Figueiredo. O quarto de Murilo Mendes naqueles tempos era uma espécie de sala musical alternativa, para onde afluíam inúmeros artistas e intelectuais com a certeza de ouvirem bons discos, inclusive os da música mais recente, impraticável então nos concertos. Mas insistindo em Mozart, e para coroar aquela identificação entre o poeta de Juiz de Fora e o compositor de Salzburg, não há como esquecer o célebre telegrama que Murilo Mendes pretendia enviar a Hitler, após a anexação da Áustria em 1938: “Em nome de Wolfgang Amadeus Mozart protesto contra a ocupação de Salzburg”.

É evidente que a importância da cultura musical de Murilo Mendes vai muito além do anedotário e da paixão por um compositor particular, mas apenas estes dois exemplos já nos permitem perceber que a perspectiva do poeta em relação à música era a mesma que ele tinha em relação à poesia: a crítica ao acanhamento cultural e a reivindicação da liberdade. Para este poeta, cuja divisa era precisamente “poesia liberdade”, a arte em geral devia ser o lugar de um contínuo debate com as formas enrijecidas de pensamento e um livre exercício de criação: “a poesia sopra onde quer”.

Considerem-se nesse sentido as polêmicas, em um dos textos que se vai ler, com a “deformação” da programação musical das rádios, pela contínua intromissão de comerciais entre os movimentos de cada peça e, principalmente, por uma novidade da época: “a condensação”. “Pasmem, senhores e senhoras! A Nona Sinfonia de Beethoven, na versão original, é uma estopada; gasta uma hora e vinte minutos de execução, mas condensada pelo novo sistema dura apenas dezessete minutos! O cavalheiro faz a barba, veste-se, e no final da operação a sinfonia também acaba! É prático, cômodo, confortável. Reserve hoje mesmo a ‘sua’ condensação!…” O poeta procurou desenvolver nestes escritos sobre música, ao nível imediatamente crítico, aquilo que sua poesia propunha em outro plano, e em alguns desses momentos suas ideias aproximam-se das de Adorno sobre a audição da música clássica na “sociedade controlada”, tais como a prática dos arranjos, a audição desconcentrada e atomizada, para “matar o tempo”, como se pode observar por esta outra passagem: “Quem pretender se divertir ou passar o tempo com a audição do gregoriano está frito, pois nele o tempo não passa. Estou certo de que alguns incautos agradecerão o aviso”. Na mesma linha, boa parte dos textos sobre música moderna foi pensada para quebrar a virtual resistência e preconceito do ouvinte, “preconceito oriundo de hábitos de rotina, por uma espécie de cristalização das faculdades estéticas”.

Mas o tom é aqui despretensioso e em geral muito bem-humorado, como pôde ser visto pelos trechos transcritos acima. Talvez por isso o próprio autor tenha denominado estes escritos de “crônicas”. Mas não infira daí o leitor que se trate de textos de circunstância, repropostos agora pelo arbítrio de um editor. Ao contrário, sua leitura é altamente proveitosa em pelo menos duas direções: a primeira, mais imediata, diz respeito ao roteiro musical proposto, enxuto e justificado com elegância e propriedade, ainda que não imune às idiossicrasias e às limitações do gosto estético do período; a segunda direção diz respeito às possibilidades de se ler nas crônicas musicais inúmeras informações sobre a poética do autor. Um exemplo entre tantos possíveis: a aproximação entre o quarteto de cordas e o soneto, pela junção que ambos proporcionam entre “representação da vida pessoal” e “grandeza técnica e sabedoria”, elimina qualquer possibilidade de associarmos de modo unívoco o livro Sonetos brancos, escrito exatamente naquele período, a uma poesia classicizante e elevada que começava então a vicejar. Ainda: muitas passagens das crônicas podem ser relacionadas com fragmentos do livro O discípulo de Emaús (1943), normalmente visto como ideário estético do autor, particularmente as passagens sobre Mozart e Beethoven (os quartetos), além, é claro, das afinidades entre as definições de música e poesia. Enfim, para quem quiser descer aos detalhes, pode-se ver na separação entre partes das crônicas musicais deste livro uma antecipação de um procedimento famosos nos textos tardios de Murilo Mendes: as “bolinhas pretas”, que revelam um modo de ver descontínuo, mas interessado em percorrer a totalidade do objeto a ser conhecido.

Foi somente a partir da quarta crônica que o projeto de uma “Formação de discoteca” iniciou-se, prolongando-se com Villa-Lobos. Podemos ter uma ideia da acolhida que tiveram os textos de Murilo Mendes na época por duas notícias veiculadas pelo próprio suplemento, durante dois longos intervalos de colaboração do poeta. A primeira delas, com o título “A Volta de Murilo Mendes a Letras e Artes”, afirma: “A nossa seção de música sempre esteve confiada a Murilo Mendes, altíssimo poeta que chegou a ligar à sua espetacular biografia o amor e a admiração que vota a Wolfgang Amadeus Mozart”; e a segunda: “Com justiça considerado um dos maiores conhecedores da música, já tendo havido quem lhe sugerisse reunir em livro os seus artigos ‘Formação de discoteca’ aqui veiculados, Murilo Mendes retoma de hoje em diante sua crônica musical neste suplemento”. A edição das crônicas, entretanto, estava longe de ser primorosa, apresentando inúmeros erros tipográficos e, mais importante, esquecendo-se de mencionar que a série “Formação de discoteca” encerrava-se com o segundo escrito sobre Villa-Lobos. É possível mesmo dizer que havia um certo improviso por parte do próprio poeta, pelo menos nas crônicas iniciais, quando, por exemplo, ele encerra algumas delas prometendo “voltar ao assunto” na seguinte, o qual era abandonado sem maiores explicações. O que parece ter ocorrido é que o próprio projeto ganhou corpo depois de começado, inclusive pela receptividade dos leitores que se comunicavam com o poeta por cartas; isto é, o que parecia uma seção muito despretensiosa acabou exigindo do autor uma posição mais sistemática.

A organização da série é cronológica, e os critérios para a seleção de compositores e obras se resumem a três: discos encontráveis no mercado do Rio de Janeiro ou facilmente importáveis, restrição aos compositores realmente “universais” (ao invés de uma posição “eclética”) e, dentro de cada um desses compositores, também o critério “universalista” das obras. Algumas vezes o poeta indicou discos específicos, sendo que a maioria deles permanecem gravações de referência, reencontráveis agora em CDs. Em termos quantitativos, o poeta hesitava entre duzentos e quinhentos discos, algo mínimo para atingir o plano proposto — o de uma discoteca como “instrumento harmonioso de cultura”, e não simples passatempo para auxiliar a digestão”. (É importante considerar que os discos da época, anteriores aos Lps, podiam conter apenas cerca de dez minutos de música, de maneira que os quartetos de Mozart dedicados a Haydn, para mencionar algumas das obras indicadas, já representavam perto de vinte discos, atualmente compactados em três CDs).

O primeiro critério — os discos disponíveis no mercado — pode explicar, pelo menos em parte, a quase omissão de Bartók e Schönberg, indiscutivelmente dois dos maiores músicos de nosso século. Uma ausência que talvez surpreenda o ouvinte atual, como a de Mahler, compositor dos mais gravados atualmente com diversas integrais de suas sinfonias, deve ser atribuída ao desconhecimento de sua obra na época, que só veio a ser devidamente valorizada quase vinte anos depois. Contrariamente, a ausência de Brahms chega a ser bizarra e só pode ser motivada por idiossincrasia. Outra observação que poderia ser feita é o destaque, talvez excessivo, dado a Manuel de Falla, merecedor de duas crônicas do poeta. Além disso, despontam aqui e ali farpas a representantes de três gerações sucessivas de compositores nacionalistas e com um linguagem de sabor romântico — Smetana, Dvorak e Sibelius, cujos “abacaxis” e “xaropadas” não agradavam ao poeta, que acompanhava aqui, portanto o gosto neoclássico da época, embora com ressalvas interessantes: para ele a volta a processos de composição clássicos podia ser um bom corretivo ao exacerbamento do experimentalismo na música moderna, carente, nesse sentido, de “espontaneidade”; no entanto, ele não deixava de colocar reparo a uma volta meramente artificiosa a convenções passadas, questionando pela raiz a proposta neoclássica.

Essas e outras críticas que poderiam ser formuladas talvez escondam, porém, o essencial: o que se vai ler aqui é um ponto de vista artístico (de “poeta”, como insistia o próprio Murilo Mendes), e inevitavelmente parcial. Mas é tal parcialidade, sem sofisma, o que torna os escritos instigantes. O olhar aqui não é convencional, sente-se desobrigado de reverenciar o que é consagrado e pode deter-se em aspectos muito específicos de obras e compositores. Talvez o exemplo mais importante desse ponto de vista seja o relevo dado à música de câmara. É claro que já não havia naquela época nenhuma novidade em sublinhar os quartetos de Beethoven, por exemplo, mas certamente tal destaque vinha (como ainda vem) sempre dividido pelo menos entre as sinfonias e as sonatas para piano. Murilo Mendes, porém, dedica a estas últimas apenas o espaço de meia crônica, ao passo que duas inteiras referem-se aos quartetos de cordas. O mesmo destaque ocorre com outros compositores, como Mozart, Schubert, Schumann, Debussy e o seu único quarteto de cordas etc. Ainda aqui, o poeta aproxima-se de Adorno, para quem a “capacidade de ouvir música de câmara é uma das premissas fundamentais para compreender a nova música”, pois em seu “abrir-se repentinamente ao diverso” ela exigiria a audição concentrada. Uma das afirmações de Murilo Mendes é muito semelhante: “assinalemos, também, que o amador disposto a ouvir e assimilar todos os Quartetos [de Beethoven] estará mais apto a abordar a música moderna”.

Outra postura interessante é a de evitar quase sempre as questões técnicas, embora se mostre capaz de desenvolvê-las (Murilo Mendes em sua adolescência tera sido um pianista promissor), preferindo uma discussão sobre o alcante atual e crítico de cada obra e/ou compositor referido. É em tal discussão que transparece ainda mais o olhar pessoal do poeta, projetando temas de sua mitologia pessoal como o da Espanha, que ele conheceria uma década depois, sobre o quarteto op. 96 de Beethoven, ou efetuando uma distinção interessante entre música intimista e obras de “expressão coletivista”, cuja audição não funciona “dentro de um pequeno aposento”, tais como “A paixão segundo S. Mateus”, de Bach, e a “Nona”, de Beethoven — “obras destinadas a produzir contágio de ideias e sentimentos elevados entre os homens, e que requerem a atmosfera de uma igreja, de um auditório, de um teatro”. A distinção é extensiva à obra poética do autor, quando ele próprio denomina as alternativas (não excludentes) da poesia pessoal e da poesia social.

Nas crônicas transparece também a visão religiosa do poeta, especialmente em algumas definições genéricas da música: “transporte a esse lugar de inocência que tanto amam as crianças, os santos e os poetas (…) e que a música nos reconstitui melhor que em nenhuma outra arte, dando-nos uma antecipação da Promessa”; “A música é uma chave do conhecimento do universo, como a religião ou a ciência”. Na apreciação de obras e períodos musicais, o leitor de Murilo Mendes poderá reconhecer ainda a aplicação do “essencialismo”, curioso método de conhecimento criado pelo grande amigo do poeta, Ismael Nery, e cujo interesse maior consiste na aproximação surpreendente da visão religiosa e vanguarda artística. É a partir desse método, com sua proposta de apreender uma unidade profunda da humanidade por detrás das divisões espaço-temporais, que Murilo Mendes considera, entre outras obras, as “Bachianas” de Villa-Lobos. “A missão das ‘Bachianas’ é política, no mais alto sentido do vocábulo: trabalham para a construção da cidade ideal, onde um dia se apagarão todos os ressentimentos e todos os ódios, onde a família humana verificará, enfim, que procede de uma origem única, reconhecendo-se e amando-se na unidade da música.”

Nesse sentido, a leitura destas crônicas pode ser mais proveitosa se relacionada com a biografia ampla do poeta, artística e pessoal, as quais se confundem neste autor tão obcecado pela reunião e pela totalidade.

O interesse de Murilo Mendes pela música começou, por assim dizer, desde sempre. É o que revelam alguns trechos de suas memórias: “Nasci coisando, nasci com a música”; “Juiz de Fora era um trecho de terra cercado de pianos por todos os lados”; “No princípio quero pegar o som” etc. a crítica enfatiza tanto o aspecto visual e imagético de sua obra, que acaba descuidando deste: a imaginação do poeta também é auditiva e com a mesma intensidade; aqui novamente podemos recorrer ao livro de memórias, cujo título, A idade do serrote, já revela o pendor para a evocação sonora, sem esquecer que os primeiros episódios do livro associam as descobertas iniciais do menino ao universo musical, como na canção entoada por “Etelvina” com quem “aparentemente tudo principiou”. “Esta cantiga entrou no meus poros, assimilei-a: começava a música, o ritmo do homem começava; era uma vez, e será para todo o sempre.”

É certo que há uma afirmação muito forte no último capítulo do mesmo livro, denominado significativamente “O olho precoce”: “o prazer, a sabedoria de ver, chegavam a justificar minha existência (…). O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida”. Mas é preciso ainda insistir que muitas imagens, cuja visualidade parece ostensiva, parecem ter sido motivadas pela sugestão sonora. Assim, a abertura do importante “Poema barroco” associa, como de hábito no poeta, realidades muito distintas, criando uma forte camada visual: “Os cavalos da aurora derrubando pianos/ Avançam furiosamente pelas portas da noite”, mas a raiz da imagem parece consistir na atmosfera barulhenta do amanhecer.

A “biografia musical” de Murilo Mendes prosseguiria com diversos “encontros” e surpresas. Eis alguns episódios: a fuga do colégio interno para ver Nijinski dançar (1917), a audição de Petrouchka em 1922, a irreverente carta a Drummond (1931), escrita de Pitangui (onde morava o irmão do poeta, afeiçoado à música clássica), anunciando uma “porrada de discos”: “Prokofief, Mussorgski e Stravinski. Meu mano tinha chegado até Wagner, mas eu fiz ele dar um pulo até aqueles bambas”, a “descoberta” de Mozart em 1935, a quem ele dedicaria inúmeros poemas, além do livro As metamorfoses (“À memória de Wolfgang Amadeus Mozart”), a audição de Webern (“webernizei-me”) e de seus jovens admiradores europeus quando o poeta já morava na Itália (alguns de seus poemas foram musicados por Luigi Dallapicola). A paixão persistente pela música é reafirmada no seguinte trecho de carta a Manuel Bandeira, após a leitura do Itinerário de Pasárgada: “Gostei muito de ler que para você a poesia foi um substantivo da música, porque comigo se deu a mesma coisa”.

Em outras palavras, ao se falar da trajetória poética de Murilo Mendes torna-se absolutamente necessário refletir não apenas sobre o seu diálogo com as artes plásticas, mas também com a música, do qual este livro é um momento privilegiado. O leitor pode complementá-lo com uma antologia imaginária dos poemas escritos a partir de ou sobre música, que daria um volume muito significativo e surpreendentemente grande, incluindo desde os “noturnos” do primeiro livro às homenagens dos últimos.

Isso coloca em causa a musicalidade da poesia de Murilo Mendes. Existe uma declaração preciosa do poeta, de 1959, em que ele expõe mais diretamente as relações de sua poesia com a música e que pode auxiliar muito nesse tópico: “Persegui sempre mais a musicalidade que a sonoridade; evitei o mais possível a ordem inversa; procurei muitas vezes obter o ritmo sincopado, a quebra violenta do metro, porque isso se acha de acordo com a nossa atual predisposição auditiva; certos versos meus são os de alguém que ouviu muito Schönberg, Stravinski, Alban Berg e o jazz”.

O que se pode observar é que a prevalência da musicalidade sobre a sonoridade tem como consequência a aproximação de blocos sonoros distintos, numa ênfase aos movimentos mais largos da composição do poema, os quais se sobrepõem aos aspectos de detalhe.

É uma vertente quase oposta à de outro poeta brasileiro moderno que, como ele, mantinha com a música uma espécie de consórcio íntimo: Manuel Bandeira. As declarações de Bandeira no Itinerário de Pasárgada e nas crônicas musicais coligidas por Drummond em Andorinha, andorinha atestam a enorme importância da música em sua obra (“Sinto que a música é que conseguiria exprimir-me completamente”), mas o diálogo aqui é inteiramente diverso daquele efetuado por Murilo Mendes. Em Bandeira, podemos perceber uma técnica primorosa do artesanato sonoro, trabalhado à exaustão, em seus “encadeamentos e paralelismos”.

Apesar das diferenças, percebe-se em ambos a continuidade de algo iniciado entre nós por Mário de Andrade nos anos 20: a exploração poética de elementos da linguagem musical, dentro da proposta das vanguardas de interação entre as artes. Tratava-se de trazer para as artes temporais (poesia e música) o elemento espacial ou a simultaneidade e levar para as artes espaciais o fluxo temporal. Mário de Andrade, que idealmente gostaria de ter se dedicado “apenas à música como estudo e à literatura como criação”, lidou todo o tempo com a relação entre as duas artes. Inicialmente, no “Prefácio interessantíssimo” à Pauliceia desvairada (1922), posteriormente em A escrava que não é Isaura (1924), para ficarmos apenas na fase heroica do modernismo brasileiro.

Neste último texto, Mário procura tratar de um dos cavalos de batalha das vanguardas — a simultaneidade — já não pelo seu domínio mais esperado: o da pintura, mas pelo da música, pelo polifonismo. “Polifonismo e simultaneidade são a mesma coisa. O nome de polifonismo caracteristicamente artificial deriva de meus conhecimentos musicais…”. O livro A escrava que não é Isaura, ao lado do impulso provocativo, tinha intenção didática óbvia, e a teoria do polifonismo pretende explicar a linguagem da poesia moderna em suas diferenças com a poesia “passadista” (entre nós, os desdobramentos do parnasianismo); nesta impera a linearidade, as ideias são “concatenadas” da mesma forma que na melodia tradicional. Já a poesia de vanguarda, buscando a “simultaneidade exterior da vida moderna”, justapõe ou “sobrepõe” ideias de modo a recordar o papel da harmonia. O efeito final é polifônico ou de várias vozes que se imbricam produzindo “sensações complexas”.

O efeito portanto é o da montagem, aspecto visual que pode ter, no entanto, um tratamento musical. Um exemplo entre tantos e particularmente caro a Murilo Mendes: o verso staccato, pleno em si mesmo, que compõe com os demais uma unidade de fatos aparentemente desconexos, cuja impressão final é a da descontinuidade.

Esse princípio de descontinuidade foi radicalizado na música moderna pela incorporação do ruído, criando um discurso sincopado. Luigi Russolo, um dos mentores do assunto, efetua a seguinte diferença: “chamamos som ao que é devido a uma sucessão regular e periódica das vibrações; ruído, ao que é devido a movimentos irregulares, tanto no que se refere ao tempo, como à intensidade.”

Em síntese, temos em Murilo Mendes uma profunda junção entre imagem e som, ou uma criação poética tensionada entre pintura e música, tensão que talvez exista em toda a poesia, particularmente num projeto totalizante como o do poeta mineiro.

O leitor poderá avaliar a posição do poeta em relação às vanguardas no texto exemplar sobre Stravinski. Mas em Murilo Mendes tudo sempre é mais do que aparenta. A expressão “revolucionário conservador”, grifada em um dos livros sobre Mozart de sua biblioteca, é mais próxima de suas intenções, em que a livre pesquisa estética quase sempre vem associada à recuperação de uma totalidade de fundo religioso.

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O propósito da longa digressão foi o de realçar ainda mais a importância do presente livro, relacionando-o com um contexto amplo, vital não apenas para a obra de Murilo Mendes mas para toda a arte contemporânea. Mas o leitor pode desconsiderar tais observações e restringir-se à saudável curiosidade de ouvir um grande poeta falar sobre música — fato rato entre nós e, nos termos de uma “formação de discoteca”, inédito. O roteiro musical que ele nos propõe aqui pode ter perdido em parte a atualidade, mas permanece integralmente fascinante.

Ouro Preto, junho de 1993.

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MOURA, Murilo Marcondes de. “Introdução”. In: MENDES, Murilo. Formação de discoteca e outros artigos sobre música. São Paulo: Giordano/Loyola/Edusp, 1993, pp. XIII-XXIX.

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Nota: Agradeço ao professor Murilo Marcondes de Moura, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH/USP, a autorização para que o texto fosse aqui publicado. Neste mês de agosto, aos domingos, irei reproduzir as quatro primeiras crônicas de Murilo Mendes presentes no livro Formação de discoteca. Cada crônica será acompanhada de links das músicas mencionadas por Murilo Mendes — atualmente disponíveis em plataformas como Spotify e YouTube —, de modo que os(as) leitores(as)/ouvintes possam encontrar, nos textos, uma fonte de fruição-pesquisa-audição.

Formação de discoteca, de Murilo Mendes

Desde o início do ano, até julho, publiquei semanalmente gravações em áudio de textos literários no canal Desenhares, da plataforma SoundCloud. Já vinha acalentando essa ideia há tempos e consegui colocá-la em prática em 2018, o que me deixou bastante entusiasmado, sobretudo porque tive a oportunidade de estreitar os laços com outros escritores.

Ao longo do mês de agosto, darei uma guinada no rumo do projeto. Publicarei neste blog os quatro primeiros textos que compõem o livro Formação de discoteca, de Murilo Mendes. Trata-se de crônicas e artigos que Murilo escreveu para o suplemento “Letras e Artes”, do jornal carioca A Manhã, entre 1946 e 1947. São indicações preciosas feitas por um de nossos grandes poetas de um roteiro musical destinado a ouvintes amadores (como diz ele próprio).

Cada texto será acompanhado de links das músicas mencionadas por Murilo Mendes — atualmente disponíveis em plataformas como Spotify e YouTube —, de modo que os(as) leitores(as)/ouvintes possam encontrar, nos textos, uma fonte de fruição-pesquisa-audição.

O livro Formação de discoteca teve apenas uma edição, organizada pelo professor Murilo Marcondes de Moura e publicada em 1993 graças a um esforço conjunto das editoras Giordano, Loyola e Edusp. Infelizmente não foi reeditado até o momento. Esperamos que a divulgação de alguns dos textos que o compõem estimule os editores a relançá-lo na íntegra.

É importante dizer que a publicação, neste blog, dos quatro primeiro textos do livro foi autorizada pela Agência Riff, que cuida dos direitos autorais de Murilo Mendes em acordo com os herdeiros do autor. Agradeço a Lucia Riff pela gentileza. Também agradeço ao professor Murilo Marcondes de Moura, da FFLCH/USP, que me autorizou a reproduzir no blog o texto de introdução ao livro de Murilo Mendes.

A leitura dos textos de Formação de discoteca, nas palavras de Murilo Marcondes de Moura, “é altamente proveitosa em pelo menos duas direções: a primeira, mais imediata, diz respeito ao roteiro musical proposto, enxuto e justificado com elegância e propriedade, ainda que não imune às idiossicrasias e às limitações do gosto estético do período; a segunda direção diz respeito às possibilidades de se ler nas crônicas musicais inúmeras informações sobre a poética do autor”.

Então vamos lá. Conto com a leitura e a audição de vocês!

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Ah, sim: amanhã, 4 de agosto, publicarei o texto introdutório de Murilo Marcondes de Moura. E, no domingo, o primeiro texto de Murilo Mendes.

Os panos

Beatriz devia estar com três ou quatro anos. Quase toda noite, ao deitar, colocava algum pano na barriga por baixo da blusa e dizia que estava grávida e que precisava de ajuda no parto. A pessoa mais próxima tinha que acudir, fazer o teatro do nascimento, imitar o choro do neném e repetir a brincadeira inúmeras vezes até que ela dormisse, grávida de novo com o pano enfiado entre as roupas.

Certa noite — Beatriz morava com a mãe, Rebeca — a menina falava com o pai ao telefone sobre um assunto qualquer, baixou o tom de voz, levou o celular a outro cômodo da casa e contou-lhe em segredo:

— Pai, você não acredita! Eu vou ter um irmãozinho! Minha mãe está grávida.

Domingos — o pai — calou, boquiaberto, depois balbuciou palavras de concordância. Desligada a conversa, aquilo o martelaria pelas próximas noites.

Demorou mais de uma semana para visitar a filha novamente. E é óbvio que a sua curiosidade era saber se Rebeca estava grávida de fato. “Puxa vida, justo agora!…”. Enquanto abraçava Beatriz no entusiasmo do reencontro, esticava os olhos em direção à silhueta da ex-mulher. “Essa roupa não parece um pouco folgada? Por que estará usando vestido?…”.

Três visitas e um turbilhão de dúvidas passaram-se até que por fim tomou coragem de tocar no assunto dos panos, dos partos, daquela mania de Beatriz fazer papel de grávida. E contou do telefonema.

Rebeca não se continha de tanto rir. Quase nem precisou responder. Foi o sarcasmo de maior alívio que Domingos levou da ex.

Refugiadas

a que guarda o mistério do casulo

a que me mostrou Fellini
a que lia poemas comigo
a que falava sempre do Recife
a que me trouxe de volta

a que tinha licores de pequi
a que já amava os piás
a que revelou as fotos
a que me levava ao acampamento

a que ouvia o tilintar da chuva
a que ia à noite aos trilhos do trem
a que batia caixa e cantava
a que me ensinou o silêncio

a que não poupava o mínimo riso
a que previa perigos
a que faz e desfaz planos
a que está a caminho

a que permanece estática
a que singra o medo
a que se sente só
a que espreita

a que aguarda o mistério do casulo

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Sílvio Diogo, 18 de julho de 2018